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Não há espaço para ódio neste blog. Eventualmente uma ranzinzice crítica. Mas o amor às narrativas é o grande juiz aqui, a peneira vigente desta plataforma. Este é o lugar da paixão movedora de interesses afetivos.
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Gabriel Nascente e Pio Vargas - breve cotejo de estreias 9 Sep 4:41 PM (last month)

                                                                                                    Foto: Gilberto G. Pereira

Poesia é um troço mágico, que te pega pelo ritmo e te arrasta até o groove do significado. Um poeta é menos construção como poeta do que dom de manejar a palavra fora da fileira gramatical, num campo específico do poético. Talvez por isso, seja mais fácil testemunharmos uma precocidade na poesia do que na prosa. Por isso, é comum vermos poetas nascerem cedo, e não romancistas.


Indo à Biblioteca Pública da Praça Cívica, decidi ler um livro de Gabriel Nascente chamado Os gatos, que ele lançou aos 16 anos, em 1966, na famosa livraria Bazar Oió. A livraria, que foi um aglutinador de intelectuais nos anos 1950 e 1960 em Goiânia, não existe mais. Mas o livro de Nascente ainda está vivo por aí, como portador de sete vidas (e a magia da poesia cede mais vidas do que isso). 


Nascente não rejeitou seu livro de estreia. Em 2011, ele publicou a segunda edição de Os gatos, fazendo apenas o alerta de que eram seus primeiros versos, um tanto românticos, um tanto ingênuos.


Não dá para buscar excelência no primeiro livro de Nascente, mas pode-se constatar nele a verve criativa do poeta, o modo como ele expressa sua visão de mundo, tentando compreender a si mesmo no estado de coisas. 


Pio Vargas


As principais figuras que surgem no corpo poético de Os gatos são a figura do eu, da natureza e da mulher, metaforizada nos gatos ou não. Neste sentido, a aparição de Nascente em 1966 tem o mesmo valor da aparição de outro poeta goiano, Pio Vargas, em 1983. 


A diferença das estreias é que Pio Vargas, mais tarde, meio que rejeitaria – pelo menos recomendou que não lessem – seu primeiro livro publicado, Janelas do espontâneo, escrito entre seus 13 e 17 anos.


Pio Vargas morreu em decorrência de uma overdose de cocaína, aos 26 anos, em 1991. Como recompensa e homenagem à sua curta vida, em que se tornou um poeta notável, tido por alguns críticos como o maior de seu tempo em Goiás, deu-se seu nome à Biblioteca Pública da Praça Cívica.


Confesso que não conheço a poesia goiana tão bem a ponto de discordar, mas, parece-me que Vargas seria um grande poeta se não tivesse morrido. Só isso. Dizer que era o maior é querer ser grande com o ego dos outros, e que seria o maior é um desmedido exercício de futurologia do pretérito, uma espécie de grande necromancia crítica.


O que Pio Vargas fez em Janelas do espontâneo, Gabriel Nascente havia feito, com poucas modificações de olhar em Os gatos. Em seus respectivos começos, ambos têm uma precocidade verificável e verossímil, mas que não é rara nos poetas. 


É que temos o hábito de lembrar apenas dos poetas que se destacam nacional ou internacionalmente, como Paulo Leminski, que aos 16 anos era paparicado pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e chamado de novo Rimbaud, este que aos 16 anos despontou na cena poética de Paris, e aos 19, já havia se aposentado.


Paralelos


Alguns fazem um paralelo entre a figura de Vargas e a de Rimbaud para depois dizer que Vargas não pode ser considerado o Rimbaud do Cerrado porque, assim, sua poesia (a de Vargas) seria reduzida à de um epíteto. Outros, mais pé no chão, acham apenas que Pio Vargas estava acima de Leminski. 


Nem Leminski era um Rimbaud, não passando de um bom poeta (genial, no sentido de ser criativo à beça, mas longe de ser um gênio), nem Pio Vargas é um Leminski (poderia ter sido, talvez, se a vida tivesse lhe dado chance, para que eu mesmo não fique imune à necromancia crítica).


Li Anatomia do gesto, o livro mais maduro de Vargas, e gostei. Confesso que não li com tanto cuidado a ponto de fazer uma crítica, logo, isto aqui é só uma observação de leitor. Trata-se de um imenso avanço técnico e profundo cuidado imagético em relação ao livro de estreia. 


A organicidade dos poemas, o ritmo e as galerias metafóricas entre o corpo, a alma e a vida são impressionantes. Vargas já tentava fazer isso em Janelas do espontâneo, com menos sucesso, obviamente, pela falta de experiência de vida. 


O que vi no livro que reúne todos os seus livros, organizado por Carlos Willian Leite (editor da Bula, o bem-sucedido portal de literatura de Goiânia), me fez sentir vontade de ler Pio Vargas.


Comparações


Por enquanto, permaneço na lembrança de ter encontrado Os gatos, de Gabriel Nascente, na Biblioteca Pio Vargas, e acabei tendo a curiosidade de comparar o primeiro livro de Nascente com o primeiro de Vargas. 


Em Os gatos, o sujeito poético de Nascente diz coisas como:


“A densa tarde de brumas inacabadas

que hoje passa pelo farol noturno

das ruas é a surpresa da noite.” 


E Pio Vargas, em Janelas do espontâneo, diz:

 

“brilha o gigante girassol

no horizonte

vomitando luzes frouxas

à terra.

descansa o jardim

e minha tarde começa a acontecer.”


Diz Nascente em seu livro de estreia: 


“Cai chuva

porque

enquanto a terra molhas

eu choro meus versos

em silêncio.” 


Diz Pio Vargas em seu livro de estreia: 


“Há uma espera

entre a chuva e o vento:

o vento empurra cruciante

nuvens que querem chover!

a enorme folha cinzenta

desliza lentamente

no tempo,

enquanto o vento bravio

varre, preparando, a terra.

a terra sorri...

mais um pouco,

e o vento libera o espaço:

gotas de amor

no seio da semente...”


Para mim, o arroubo poético - a vontade de dizer alguma coisa que irrompe na alma - é a mesma, nas respectivas fases juvenis, que se deram em épocas diferentes. Nascente vindo primeiro, obviamente.


... 



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Cartografia do desejo – a cidade e o homem 6 Sep 2:27 PM (last month)

 Relato do roteiro lírico-etílico-sentimental percorrido por mim, Belém, Vilson Freitas e Luiz Cam, num talvez sábado de outubro de 2011; em memória de Cam e uma lembrança dos dez anos de sua morte


Luiz Cam (1963-2015), arquiteto, cinéfilo, documentarista e amigo: faleceu vítima de câncer



Introdução


A primeira vez que ouvi falar em Luiz Cam foi numa conversa que tive com Lourival Belém Jr. Eu era repórter do jornal Tribuna do Planalto e fui fazer uma pauta sobre o uso das técnicas do Teatro do Oprimido com adolescentes infratores do Centro de Atenção Socioeducativa (Case), em Trindade, em 2009. Na ocasião, Belém me passou alguns de seus documentários e um de Cam. 


Aquele também era meu primeiro encontro com Belém, que se tornaria meu amigo. E desde aquele dia, sempre que nos víamos, Belém falava de Cam. Desde aquele primeiro encontro, não me lembro de uma só conversa com Belém que ele não tenha falado do amigo. Luiz Cam estava (e sempre esteve) presente nas nossas conversas. 


Não importava o assunto - redução de danos, atendimentos psiquiátricos, polícia, política, cidadania, cidade, rua, música, cinema, indagação sobre o que é a vida, sobre o que é a arte -, Luiz Cam atravessava nossas falas e surgia nas lembranças de Belém. Em 2011, finalmente conheceria Cam. 


Ele era alto, esguio, educado com todo mundo, e mantinha sempre um disposto sorriso no rosto. Foi então que nós três – junto com Vilson Freitas, sujeito bonachão que trabalhava com a família de Belém – combinamos de fazer um passeio pelas ruas de Goiânia. Nessa caminhada, tive praticamente a única oportunidade de ampla conversa com Cam sobre uma porção de coisas. Não me lembro a data exata. Com certeza era um sábado, talvez de outubro.


Era um passeio lírico-etílico-sentimental. O roteiro tinha pontos de importância biográfica para Belém e Luiz Cam, um Rum’s Day. Era uma espécie de périplo de Leopold Bloom pela Dublin de James Joyce, sem o mergulho mítico, só na superfície do asfalto goianiense em que deslizávamos sob um sol cada vez mais quente, que tentávamos ignorar à base de conversas e lembranças. No Rum’s Day não havia rum, só cachaça e cerveja, que não era Guinness, mas animava a prosa.



Cam, Camseira, Cameira


Partiríamos do Mercado Central da Vila Nova, na Praça Boaventura. Foi o único lugar onde o copo conteve café. Luiz Cam demorou chegar ao local. Eu já havia entendido o jogo de palavras pelo qual se formou seu apelido para os mais chegados, Camseira. Razão pela qual Belém é Belemzeira. Poderia ser pela demora em chegar aos compromissos com os amigos. 


Entre Cam e Camseira rola uma série polifônica que eu particularmente fui descobrindo aos poucos. Camseira, por exemplo, num átimo poderia se transformar em Cameira. Luiz Cameira, amante da horizontalidade da cama, não na companhia da preguiça, mas da volúpia. Gostava da figura feminina. Era chegado a esse cobiçado tipo de meneios, um fio que entramava a meada de desejos pela cidade. 


Goiânia para Luiz Cam era impensável sem o cinema, a arquitetura, a arte, os amigos e o sexo feminino. O título de um soberbo documentário de Belém, corroteirizado por Cam, é Imagens da cidade dos homens. Tem a ver com as mil e uma tramas urbanas, e não exatamente com as mulheres, embora uma bem gostosa apareça fazendo esteira em pleno Parque Vaca Brava (quem teve a ideia de colocar aquela mulher lá?). Mas neste caso específico, é um modo evocativo de se referir à dialogia dessa cartografia do desejo, que entre um gole e outro de cachaça bem que poderia chegar à referência felliniana, Cidade das mulheres


Outra marca dessa dialogia é o fato de Cam ser um sobrenome arranjado, um acrônimo do Cineclube Antônio das Mortes, a simbólica casa de cinéfilos fundada por um grupo de amigos nos anos 1980, entre eles o próprio Cam e Belém.


O nome Antônio das Mortes, emprestado do personagem ícone de Glauber Rocha de Deus e o diabo na terra do Sol e O dragão da maldade contra o santo guerreiro, se entrelaça com outro nome, menos conhecido, mas que certamente sondava a alma de Cam quando escolheu adotar o novo sobrenome, Louis Isadore Kahn (1901-1974), arquiteto estoniano naturalizado americano muito em voga nas décadas de 1960 e 70. 


Luiz Cam era arquiteto, e tinha as mesmas preocupações do então famoso homônimo radicado nos EUA, para o qual a arquitetura só valia a pena se fosse para assistir as condições humanas, dando à forma um paralelo imediato com o social. Era preciso, portanto, olhar a cidade com as lentes do humano. 


Além disso, Cam é um personagem bíblico, que, segundo o livro de Gênesis, teve a si mesmo, sua família e todas as gerações subsequentes amaldiçoados pelo pai, Noé, por ele, Cam, ter visto o pai nu e bêbado. Cam era o filho caçula de Noé, e pai de Canaã. Pagou caro por ser sincero e apontar a nudez do rei: “Maldito seja Canaã;/ seja servo dos servos a seus irmãos” (Gênesis, 9, 25). 


Séculos depois, as teorias racistas do Ocidente cristão vinculariam a bravata bíblica ao malogro de Cam como exilado na África com sua família, pondo-a como forjadora do continente. O racismo inverteu o processo histórico para justificar a escravidão do povo africano.


Como homem negro e consciente de sua origem africana, Luiz Cam certamente sabia dessa identidade étnico-verbal com a África. Nunca perguntei, e por isso nunca soube, o verdadeiro sobrenome dele, até sua morte em junho de 2015, aos 52 anos, vítima de um câncer. Luiz Carlos Sousa Rocha, era o nome dele, disse-me Belém uma vez. Não importa tanto assim, porque ele era o Luiz Cam, arquiteto, cinéfilo e documentarista.



Cam e a cidade


Aqui, o que importa mesmo é a memória dessa figura ímpar de Goiânia que se preocupava com os rumos da cidade. Na cartografia do desejo pulsando em seu imaginário, havia uma preocupação autêntica com um ideal urbano. Por isso, além do cinema, da arquitetura, a política (como conjunto de práticas tomadoras de decisão, como ambiente de construção do poder) não ficava de fora de seus anseios. 


Tanto é que os dois documentários dirigidos por ele a que tive acesso, As margens da Vila Roriz, de março de 2002 (24 minutos), e Desterro, de março de 2004 (26 minutos), refletem essa preocupação. Ambos têm roteiro assinado por ele e por Belém, seu parceiro desde os tempos de garotos.


No primeiro documentário, com uma linguagem informal, certamente na intenção de mostrar o real sem filtros narrativos, vemos depoimentos de moradores da Vila Roriz com um cunho de denúncia social, mostrando as condições deploráveis das habitações numa área às margens do Rio Meia Ponte, loteada no início dos anos 1990. 


Desterro é um trabalho de elaboração técnica mais apurado, e vai além da cobertura do primeiro, embora siga um argumento semelhante. Utiliza-se de imagens terrestres, aquáticas e aéreas para mostrar a vida dos moradores às margens do Rio Meia Ponte esquecida pelo poder público e pela sociedade. 


Nesse documentário, vemos o relato sobre o descaso das autoridades, a negligência médica e a miséria absoluta em lugares como o acampamento dos sem-terra e a própria Vila Roriz cujo nome estava sendo mudado, a pedido do autor do loteamento (Joaquim Roriz), que provavelmente não queria ver sua marca atrelada a um espaço de miséria e abandono que ele mesmo ajudara a fundar. 


Há também o depoimento de uma mulher que se lembra de como sua mãe, sofrendo de hanseníase, foi retirada da casa da família para ser isolada na vila construída pelo poder público como política de higienização social chamada Colônia Santa Marta.


As preocupações de Luiz Cam não eram inócuas, como não é, nem nunca foi, a luta de Belém pelos direitos das minorias e por políticas públicas que contemplem os marginalizados em Goiânia. Em 2010, a Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou um relatório, segundo o qual, a capital goiana era uma das cidades mais desiguais do mundo, levando em conta a renda da população e o acesso a políticas públicas como saneamento básico e água tratada. 


A realidade apontada por Cam em seus documentários do começo dos anos dois mil ainda gritava em 2010, e hoje, quase 15 anos após sua produção, não mudou nada. Neste sentido, Luiz Cam nos deixou um legado crítico da história de Goiânia, uma capital ainda em fase de crescimento.


Como em toda grande cidade, o crescimento que Goiânia vinha tendo era feito à base de iniquidades e descasos com as populações pobres, que migram para a capital sob o desejo de mudança, de inclusão, desejo de exercer seu direito de ser e de viver como cidadãos verdadeiros, donos de sua voz, mas que acabam nos porões da desigualdade. A cidade sempre “lhes nega oportunidades, mostra a face dura do mal”, para citar Paralamas do Sucesso.


Eu já tinha visto os documentários de Cam quando marcamos a caminhada. Eu já sabia que ia andar ao lado de um sujeito que, além de carismático, tinha uma visão acurada sobre as questões da cidade, como era visão do próprio Belém.


A ideia de nossa caminhada era traçar novas rotas e olhar a cidade criticamente, suas esferas de classificação e de exclusão, o modo como o poder se apropria dos desejos e os encaixota e os reprime. Seria a primeira de muitas que faríamos. Mas depois daquela marcha inesquecível nunca mais voltamos a traçar uma nova rota que desse conta da cartografia do desejo desenhada em nossa alma.



Périplo número 1



Os quatro cavaleiros do chope-a-litro


Quando Cam chegou ao café do mercadinho central, na Vila Nova, já eram quase onze horas. A farra da marcha começou. Suas gargalhadas se misturaram às do Belém e nos impulsionaram rumo ao Mutirama. Subimos a Avenida Independência. Na altura da Casa da Indústria, todo o trecho da Avenida Araguaia estava tomado por máquinas trabalhando na nova obra que ampliaria o parque, ligando-o ao bosque Botafogo, antes separado pela extensão da Araguaia que vem da Praça Cívica, cruza a Anhanguera lá em cima, depois as avenidas Paranaíba e Contorno, e segue seu rumo passando por cima da Marginal Botafogo até desaguar na Independência, onde estávamos. 


Paramos para ver as máquinas trabalhando lá embaixo, destruindo o trecho da avenida para criar a nova estrutura do parque ampliado. Muito tempo depois, seria inaugurado naquele trecho o Túnel Jaime Câmara, que quando chove forte enche de água até a tampa. 


Subimos a Independência mais um pouco e viramos à esquerda, na Avenida Contorno. Chegamos em frente à antiga Escola Técnica Federal, hoje IFG, onde Cam fez o curso técnico de Edificações. Ficamos por ali parados e conversando sobre os tempos de escola de Cam, que se lembrou de algumas namoradas.


Na ocasião de nosso passeio, apesar de as obras do Mutirama já estarem em pleno funcionamento, ainda havia resistência de moradores das casas espremidas numa pequena área entre a Avenida Contorno, a Rua dos Comerciários e a Rua CD que desemboca na Marginal Botafogo. Algumas teriam de ser desocupadas. Do ponto do IFG, na Contorno, caminhamos até a marginal Botafogo procurando saber quais casas seriam demolidas. Debalde. 


Voltamos em marcha pela Avenida Paranaíba e descemos a Araguaia de novo, passando pelo sebo Hocus Pocus, um foco de resistência de livros e revistas que já merecia estar tombado pelo patrimônio cultural da cidade. 


Viramos à esquerda na Contorno, passamos pelo Supermercado Tatico, subimos a Rua 64 e paramos em um bar, na esquina com a Rua 60, para tomar a primeira cachaça. Bebi cerveja junto com Vilson, sujeito alto, tranquilo, gente boa, ar de pantaneiro bonachão, que tempos depois voltaria para Campo Grande, sua terra natal. Bebíamos e tagarelávamos. Éramos agora os Quatro Cavaleiros do Chope-a-Litro.


Deixamos o boteco da 60 pela 58 e desaguamos na Paranaíba para lá na frente virarmos à direita na rua 70. Paramos ao lado de uma daquelas casas antigas da capital, construídas nas primeiras décadas de sua fundação, uma dessas casas de arquitetura indefinida. Não me lembro o que Cam me falou dela. 


Dobramos a rua 55 em cuja esquina com a Avenida Goiás entramos numa lanchonete. A ideia era comprar água, mas acabamos bebendo mesmo foi mais uma cerveja porque sabíamos que se transformaria em água vertida em suor (e urina) logo adiante. 


Seguimos pela Goiás à direita, rumo à Praça do Trabalhador. Quando chegamos em frente ao Cine Fênix, paramos e ficamos olhando os cartazes de filmes pornôs. Conversávamos, mas muito dessas conversas se perdeu. Lembro-me que travei um pequeno diálogo com Cam sobre literatura e falei que adorava a obra de Milton Hatoum, sobretudo pela natureza trágica de sua narrativa, em que a morte estava sempre presente, à espreita, e quando menos se esperava ela surgia.


Permanecemos um tempo diante do Cine Fênix, confabulando desejos. Imiscuímos o passado, enquadramos o futuro, deliberamos projetos. Belém lembrou de uma cena do Concerto da cidade, um de seus documentários co-roteirizados por Cam, em que uma mulher aparece tomando banho de sol no terraço de um prédio (quem terá pensado nessa cena?). Belém mostrou o prédio. Olhando no sentido da Praça do Trabalhador, um pouco para a direita, vemos a silhueta da torre, cúmplice dos banhos de sol de uma mulher quase nua. 


Cartografia do desejo


Tínhamos um olho no passado e outro no futuro, mas eram lugares do não mais e do não ainda. Só Cam havia fincado os pés no presente. Na boca do leão, Cam queria entrar no Cine Fênix. Queria espiar o que se passava naquele momento, talvez medir a tonalidade dos gemidos, matar a saudade das sessões solitárias, ou talvez fosse apenas uma curiosidade libidinosa que ele queria eliminar.


Cam queria entrar. Belém queria seguir adiante. Cam protestou. Vibrei com o protesto, mas covardemente fiquei calado. Se Belém cedesse a pressão do amigo, entraríamos todos para a câmara escura do desejo, veríamos os orgasmos produzidos entre realidade e ficção, porque nunca se sabe até que ponto um orgasmo em um filme de sacanagem é verdadeiro ou fingido, como nunca se pode saber de fato quando o orgasmo de uma mulher é fictício, para agradar ao parceiro, ou verdadeiro, agradando a si mesma.


Vilson, o pantaneiro observador, observava atentamente a disputa, mas também não se manifestou. Quem cala consente. Mas consente com o quê, neste caso? A civilidade, suave, conduziu a força, e então seguimos, sob mais um pouco de protesto de Cam, sempre mui ponderadamente, de boa, como se a realidade fosse uma coisa aceitável, mas não necessariamente a ser seguida.


O fato é que se formos levar em conta as teorias nas quais acreditamos, castramos Cam. Somos leitores de uma turma dos anos 70 e sabemos o peso da repressão do poder sobre os corpos e as mentes. Sabemos disso lendo estudiosos como Félix Guattari e Gilles Deleuze que discursam sobre a libertação do desejo. 


Em O Anti-Édipo, por exemplo, Guattari e Deleuze argumentam em favor da compreensão e da libertação “da potência revolucionária do desejo”. Para o status quo, os governos, o poder, enfim, o desejo gera o caos, o desejo aparece como função de desordem, e por isso deve ser disciplinado, canalizado. 


Em Micropolítica: cartografias do desejo (em parceira com a brasileira Suely Rolnik), Guattari é contra essa ideia repressora, em que uma série de pequenos poderes (olha nós na jogada) contribui para a repressão. Guattari coloca o “desejo enquanto formação coletiva”. A ruptura dessa micropolítica é chamada de marginalidade, e combatida pelo poder.


Em Revolução molecular: pulsações políticas do desejo, Guattari diz que há um mito “de uma necessária castração do desejo.” Ele vê a marginalidade não como “manifestação psicopatológica, mas como a parte mais viva, a mais móvel das coletividades humanas nas suas tentativas de encontrar respostas às mudanças nas estruturas sociais e materiais.”


Para Guattari, “o desejo é sempre o modo de produção de algo, o desejo é sempre o modo de construção de algo.” De novo na Micropolítica, ele lembra que as pequenas estruturas de poder estão elencadas nas teorias clássicas da psicanálise e do estruturalismo. “Para qualquer uma dessas teorias”, diz o filósofo francês, “‘o desejo é legal, tudo bem, e muito útil’, mas é preciso que ele entre em quadros - quadros do ego, quadros da família, quadros sociais, quadros simbólicos (pouco importa como se chame isso). E, para isso, são necessários certos procedimentos de castração, de ordenação das pulsões.” 


Castramos Cam naquela tarde de vadiagem etílica. Em todo caso, após essa célere mea culpa, é bom lembrar que nem Cam era um marginal naquele círculo, nem nós éramos o status quo moralizante, modo geral. Mas, grosso modo, fizemos esse papel. Castramos Cam.


Cam seguiu ainda com as atrizes pornôs por mais algum tempo na cabeça, sem falar nada. Quer dizer, falava outras coisas, mas de vez em quando percebíamos que a natureza da fala ainda era a frustração de não ter entrado no Cine Fênix. 



Périplo número 2



Pedrinhas azuis


Pegamos a Rua 61 e depois a 74. Chegamos ao Mercado Popular, na divisa do centro com o Bairro Popular (na verdade histórica da fundação de Goiânia, Bairro Popular era toda a faixa após a Avenida Paranaíba, dos dois lados da Avenida Goiás, até topar com a linha divisória da Avenida Independência), cercania da área estigmatizada pelo acidente radiológico do Césio 137 de 1989. Bebemos mais umas cervejas ali, e seguimos a caminhada.


Do Mercado Popular, seguimos pela Rua 57, onde ficava a casa do homem que pegara o cilindro (parte de um equipamento de radioterapia abandonado nos destroços do antigo Instituto Goiano de Radioterapia, na Avenida Paranaíba) que continha o Césio 137 e começara a desmontá-lo ali. Seu irmão achou lindas umas pedrinhas azuis de Césio e as levou para a filhinha Leide das Neves brincar. Ela foi totalmente contaminada pelo material radioativo para morrer logo em seguida (seu corpo foi encerrado num caixão de meia tonelada de chumbo e enterrado no Cemitério Parque, região Norte de Goiânia). O terreno da casa do catador está hoje capeado por uma grossa camada de concreto, sem nenhuma construção em cima. 


Belém fez uma serena explanação do Bairro Popular, com ruas singelas até hoje. O bairro meio que parou no tempo. Dobramos a esquina da Rua 80 e visitamos a casa de um amigo em comum de Belém e Cam. Desde a tragédia do Césio 137, muita gente se mudara de lá. Mas outras famílias resistiram a tudo, ao fatídico acontecimento, ao estigma da desgraça e ao mito de que todos estavam morrendo de câncer por causa do Césio. Muitos morreram mesmo.


Um dos moradores que morreram anos depois era conhecido dos dois amigos. Fomos à casa da viúva que já estava casada com outro. Perguntamos pelo fulano, mas ele não estava. A mulher, muito simpática, que também era amiga dos dois, nos convidou para entrar. Entramos. Ela contou muitas histórias. Conversaram muito. Lembraram-se da juventude cheia de festas e brilho.


A essa altura, já era quase uma hora da tarde, e não tínhamos almoçado. Mas por educação, não aceitamos o almoço da simpática senhora. Após o bom papo, seguimos a marcha. Saímos da Rua 80, dobramos à esquerda na 59-A, e em seguida à direita na Francisco da Costa Cunha (antiga Rua 26-A, onde ficava o ferro velho para o qual a cápsula do Césio 137 semidesmanchada fora levada pelo catador). Veja que o poder público tratou de obliterar o nome da rua pelo qual era conhecida na época do acidente. 


Foi nesse espaço entre a 80 e a 26-A que Luiz Cam me contou uma das histórias mais extraordinárias do comportamento humano, dessas que caem como luva na cartografia do desejo da cidade. 



Morte, tesão e legitimidade do desejo


Nossas conversas eram polifônicas. Belém falava de um lado sobre o Césio 137 e Cam me abastecia do outro com sua versão de como a viúva que visitamos se apaixonou pelo atual marido, que também era amigo do casal. 


Os dois homens eram amigos, o defunto e o vivo. Quando o primeiro morreu, o segundo foi consolar a viúva, e no velório mesmo engataram uma relação que ainda durava até o dia daquele nosso périplo. E certamente até hoje, quem sabe. 


Fiquei intrigado com o interesse da viúva pelo amigo do morto no momento do velório. Lembrei de cenas de literatura parecidas, como o menino de O templo do pavilhão dourado, de Yukio Mishima, que viu a mãe transando com um homem desconhecido para ele, diante do pai no leito de morte. 


A cena de Mishima é desconcertante, mas a relatada por Cam nos oferece uma surrealidade escandalosa e ao mesmo tempo legítima. Quem há de dizer que não? Mas é curioso pensar sobre essa mulher. Acendeu-se-lhe uma chama de desejo ali, diante do morto, o mesmo morto que antes amava-a, e ela no mínimo se entregava a ele. Os dois no mínimo faziam sexo. Eles se entregavam na cama e transavam. Ele a penetrava e gozava, e ela certamente gemia, gozava, e talvez gostasse. Eles se entrelaçavam intimamente e se comiam.


Até quando ela fazia sexo com o marido, antes que ele viesse a morrer, obviamente, não dá para saber, mas eles eram casados e faziam sexo. Foi isso que me intrigou. Naquele velório, o morto no caixão e a viúva ali ao lado, recebendo as visitas. Tanta gente olhando aquele caixão.


Havia a dor da perda, mas o corpo dela não se entregou ao luto. Seu corpo reagiu à presença do corpo de outro homem, e ela deve ter sentido isso. Este foi meu espanto, misturado a minha imaginação maliciosa. Ela deve ter sentido uma pulsação diferente, eis meu assombro, quando naquele momento, o morto ali, notou-se fisgar pelo desejo por outro homem. 


A vagina contraindo de tesão, bem ali, debaixo de uma calcinha e um vestido, talvez, ou um calca, uma saia, secretamente, diante do caixão do marido. Eu perguntei, “cara, os dois se interessaram um pelo outro no velório mesmo?” E Cam disse “sim”. E eu disse “cara, que trash!”, e Cam soltou uma risada muito boa. 


Já estávamos saindo da 26-A (Francisco da Costa Cunha), seguindo a caminhada, dobrando à esquerda na Rua 15-A, quando apareceu o marido vivo, sem camisa, simples, faltando uns dentes, descabelado, mas forte. Cam não pensou duas vezes. Ao avistar o sujeito, disse sorrindo pra ele, como se dissesse pra mim mesmo, abraçando-o: 


- Olha o trash aqui. Esse é o marido da X.


Senti um pouco de arrepio no fundo da alma, não pela cena que eu havia imaginado antes, mas pelo receio de que o homem perguntasse “como assim, trash?, do que vocês estão falando?” E Cam contasse toda a história.


Mas não houve nada disso. O cara era simpático. Cumprimentou-me e danou a conversar com Belém e Cam. Eles conversaram uns dez minutos, enquanto eu travava diálogo com Vilson, e então seguimos o passeio.



Périplo número 3


Diálogos etílicos e gargalhosos


Era quase uma e meia da tarde quando dobramos à direita na Rua 25-A e passamos por dois locais muito vivos na cartografia afetiva de Belém. Primeiro, ainda na 25-A, o prédio da antiga Fundação para o Bem-Estar do Menor (Febém, onde os meninos só levavam porrada), cenário do docdrama de Belém, Recordações de um presídio de meninos, símbolo da luta ferrenha de Belém contra as injustiças sociais. Depois, já dobrados na Avenida República do Líbano, passamos pela antiga casa onde Belém viveu sua infância, na esquina com a 59-A. 


Se no prédio da ex-Febém instalou-se a Secretaria Municipal de Assistência Social, o velho lar de Belém entregou-se a uma concessionária de veículos. O capitalismo venceu um partícula do passado do meu amigo. “Brincávamos aqui. Quando chovia, era uma festa”, Belém ainda lembrou, ao olhar para um córrego capeado sob a República do Líbano (o Capim Puba).


Já estávamos pregados de fome e de cansaço a essa altura, mas ainda não se falava em parar para comer. Já não havia sequer vestígio de álcool no sangue. Evaporara tudo. Subimos a República do Líbano, passamos pela Praça Tamandaré, viramos na Rua 9 do Setor Oeste, passamos em frente ao prédio do consultório do Belém e margeamos pelo lado do Bar Glória. 


Cogitamos parar no Bar Glória. Mas pensamos melhor. Seríamos caçados e condenados pelas mulheres dos respectivos homens daquela caminhada. A castração agora foi geral. Glória é sempre lotado, com música ao vivo aos sábados. Enquanto passávamos, imaginamos o quanto seria bom parar ali e tomar uma cerveja, sob o som de batuques e movimento de pessoas. 


Sentaríamos ao balcão, porque as mesas estavam lotadas. Observaríamos o movimento, e Cam se encarregaria de travar diálogos etílicos e gargalhosos, uma espécie de diplomacia da representação do oposto, com outras pessoas. Mas a glória ficou para trás, junto com o bar, e nosso inglório cansaço nos impulsionou para as ruas do Setor Sul. 


Atravessamos a Avenida 85 e adentramos o espaço do bairro mais diferente de Goiânia, com um traçado sui generis em relação às cidades brasileiras. Não há igual. É fruto da ruptura do projeto original de Attilio Corrrea Lima, quando este deixou o projeto de urbanismo de Goiânia e Armando de Godoy entrou com nova proposta. 



Onde o vento faz a curva


Nessa parte do périplo, mais uma aula de Cam. Dessa vez, nada de surrealismo. Uma aula clássica. Discutimos sobre a cartografia do desejo e sobre o projeto arquitetônico do Setor Sul. Cam falou das ruas recurvas dando para os fundos das casas, convergindo em pracinhas que serviam como espaços públicos arejados e arborizados. 


As curvas das ruas, me explicava Luiz Cam, eram para seguir o movimento dos ventos que nunca correm reto, correm sinuosamente, como quem dança. O projeto teria sido inspirado na cidade americana de Radburn, vislumbre arquitetônico do americano Clarence Stein (1882-1975) cujas concepções vêm dos modelos de cidades jardins.


Mas a fome apertava o estômago e os calos apertavam os pés. Tivemos coragem ainda para subir até um bar em frente ao Peixinho, na Dom Emanoel Gomes, no Marista. O Peixinho é um bar tradicional daquele bairro, mas o estabelecimento da frente não consegue se firmar e sempre muda de direção, de nome. Não me lembro, portanto, sob que denominação aquele bar respondia naquele dia. Mas estava legal. Chegamos lá por volta das 15 horas e só saímos à noite.



Nungórdi doce


Bebemos chope. Comemos petiscos de boteco. Uma dose ou outra de cachaça. E os quatro cavaleiros do Chope-a-litro estavam finalizando a grandiosa jornada. Ainda tive tempo de ouvir de Cam uma piada que é um clássico do humor pornográfico goiano, aparentemente preconceituosa, mas na verdade, totalmente libertária, anti-homofóbica e anticonservadora, algo criado pelo gênio da terra. 


Um senhor da roça, pai de um adolescente da roça, visita com o filho um compadre na fazenda vizinha. Chegando lá, os dois compadres travam uma conversa animada. O dono da casa oferece doce ao velho. E ele diz “não, obrigado”. Oferece doce ao garoto, e o pai antecipa a resposta do filho: “Não, ele não gosta de doce.” Passa um tempo, o anfitrião volta a oferecer doce. “Não, obrigado”, diz o velho. Na oferta ao menino, o velho antecipa novamente: “Não, ele não gosta de doce.”


Na terceira oferta, o velho nega, e mais uma vez fala pelo menino: “Ele não gosta de doce.” Foi aí que o moleque, já não aguentando a intromissão do pai, desabafa num sotaque bem caipira: “Nungórdi doce, nungórdi doce. Jadinteocu pur caz di doce, nungórdi doce!”


Era a primeira vez que eu ouvia essa piada. Todos nós morremos de rir. A mesa se encheu de festa, com microborbulhas alcoólicas dançando no ar. Luiz Cam ria e seu corpo fazia coro na risada. Seus ombros seguiam o ritmo da gargalhada como se dissessem é isso mesmo, estamos felizes. Sua risada era um decreto de alegria. 



Adeus


Luiz Cam ria e ninguém mais tinha desculpa para tristezas eventuais. Não era uma risada espalhafatosa, era elegante, mas tomava conta da intimidade do ambiente onde ele estava, redirecionava os sentidos. Os olhares ficavam acesos e todos sentíamos uma confiança de que o papo estava bom. Sua risada era um selo de qualidade na conversa.


No fim daquele dia, Cam acabou nos deixando no bar. Saiu sozinho. Continuou a caminhada solitariamente, embora se saiba que a solidão não era seu porto. A solidão não era seu alvo naquela noite em que a cidade se abriu para nós e a cartografia do desejo estava delineada em nossas lembranças. A cidade era nossa. Era o que queríamos ter. Naquela tarde que mergulhou na noite, a cartografia do desejo fez sulco em nossa memória para sempre.


OBS: Este texto foi escrito em 2017, e publicado num blog que não existe mais. Por isso, decidi republicá-lo aqui.

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O fechamento da Cosac Naify 13 Feb 2:14 PM (8 months ago)

                                   Crédito: Site da Cosac Naify
Detalhe de uma sala da editora, que fica na Vila Buarque

OBS: Este texto foi publicado em 2015, pela ocasião do fechamento da editora Cosac Naify. Ao atualizá-lo, ele apareceu com nova data, sem registrar a data da publicação original.

Dá uma dor no coração ver a Cosac Naify fechando as portas assim, dando adeus ao mercado, só porque o dono, parece, cansou de brincar de marchand dos livros. Parece ter sido isso, é o que dizem, com a facilidade tal como se abrem e fecham os olhos. Mas vi Charles Cosac na televisão se defendendo das acusações de que ele não tem o direito de fechar a editora desse modo. E ele se defende bem. Acho que fico com ele, apesar dos pesares. O dinheiro é dele, a vida é dele, o negócio é dele.

Ao longo desses quase vinte anos de produção, Charles Cosac investiu cerca de US$ 70 milhões na editora, que mudou a cara do mercado editorial brasileiro. Vi esse valor na imprensa, e não fiquei sabendo se o montante é o total de investimentos, junto com o bilionário Michael Naify, que mora em Nova York, e era sócio de Charles, ou se era só a parte deste, conhecido pela imprensa como o milionário excêntrico de família sírio-libanesa que estudou artes em São Petersburgo, na Rússia, que também é colecionador e que decidiu aplicar sua grana em um projeto de editora por amor aos livros. Na imprensa também (Carta Capital) diz-se que a editora tem uma dívida de R$ 70 milhões.

Na Cosac Naify, tudo era diferente, das capas, às fonts empregadas, passando pela escolha dos títulos que seriam publicados, o cuidado com o papel, com as ilustrações, com a tradução, com a revisão. Começou em 1997 (sua breve história é contada no site da própria editora), publicando livros de arte, e terminou com um catálogo fabuloso e um grupo de autores que se destacavam, vencendo prêmios, como o São Paulo de Literatura, em que Estêvão Azevedo venceu com Tempo de espalhar pedras como o melhor livro do ano, cujo resultado foi divulgado no mesmo dia em que a editora anunciava seu fechamento, 30 de novembro.

Existem umas pendengas trabalhistas e sociais das quais Charles Cosac parece não querer fugir. Falou mui serenamente na televisão sobre sua decisão. Em entrevista ao programa Globo News Literatura, do canal Globo News, disse que não se trata de falência, nem de ser uma vítima direta da crise que assola o país.

Disse que vai fechar porque o projeto inicial está sofrendo ameaça de alterações pelas circunstâncias do mercado, e que não quer que isso aconteça. O dólar está alto, e por isso não pode mais imprimir na China na qualidade que o projeto editorial requer. As gráficas no Brasil encareceram demais. As livrarias só aceitam vender por consignação, não compram mais livros, e só pagam a parte da editora 90 dias após as vendas dos livros nas lojas.

Mas Lucia Riff, a agente literária mais influente do mercado editorial brasileiro, que já foi sócia inclusive da lendária Carmen Balcells (que agenciou nomes como García Márquez e Vargas Llosa), não se convenceu das explicações de Charles Cosac. Ficou mais que decepcionada, ficou brava e foi dura. No mesmo programa Globo News Literatura, disse que Charles Cosac não tem o direito de fazer isso.

Mesmo que cumpra com seus compromissos trabalhistas com os cerca de 80 funcionários da casa, diz Riff, ainda há os contratos para  publicação de novos títulos. Neste caso, o empresário vai deixar os autores na mão. É claro que é a opinião dela. Não se sabe que articulação no mercado Charles Cosac vai fazer para não deixar seus autores com publicações previstas na mão, mas é uma possibilidade e uma dura realidade que está sempre prevista de ocorrer no Brasil.

O fato é que, em um momento de fragilidade pela qual o país passa com tantas desgraças mais avassaladoras do que o fechamento de uma editora, os leitores e amantes de livros de modo geral estão tristes com esta notícia. É como se alguém tivesse sentindo uma dor no corpo terrível, em função de um acidente ou uma doença, e aí, o tempo fecha, outrem diz “vai chover”, e este alguém desaba no choro.

Não há uma data específica para o desaparecimento dos livros nas livrarias. Mas o trabalho de edição, segundo o empresário, já está encerrado, com a exceção do de alguns títulos em finalização. No site da editora, há um anúncio de desconto de 20% sobre qualquer título.

Tenho vários livros com o selo Cosac Naify. Fico triste também com esta notícia. Mas como diz um ditado em espanhol, talvez argentino, que aprendi com uma certa escritora brasileira do Sul: “Llovió, pasó!”.

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JOÃO GUIMARÃES ROSA E A EXPANSÃO DO ESTÉTICO 16 Jan 2024 7:49 AM (last year)

Ler prosa sem acompanhar o fio da história é entediante para qualquer leitor, até mesmo para aqueles que procuram no texto a qualidade estética, o cerne do trabalho literário, que vai além do enredo em si.

Essa relação leitor/texto, no entanto, é diferente na leitura da poesia, porque entra em jogo a questão da sonoridade, do ritmo, do encantamento dos versos, além do teor central, que é a condensação, a alta voltagem concentrada nas linhas poéticas.

Mas em Guimarães Rosa, as convenções de leitura em prosa vão por terra. Em seus contos e romances, o texto é um mar de poesia. São águas poéticas em ondas revestidas de prosa. Tudo está ali: a condensação, o jogo de palavras, a musicalidade finamente trabalhada, o máximo no mínimo e a expansão do estético.

Basta a leitura de um conto de Primeiras Estórias, de um trecho de Grande Sertão: Veredas, ou de qualquer outro livro de Rosa, para o leitor se deixar mergulhar na poeticidade do texto e surgir de lá como quem traz ricos tesouros de linguagem, pronto para sentir-pensar.

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A noite de Elie Wiesel 24 Dec 2022 3:18 AM (2 years ago)

 

As tropas americanas, da 80ª Divisão de Infantaria, entraram no Campo de Buchenwald, em 16 de abril de 1945, para resgatar os prisioneiros, e os fotografaram. Elie Wiesel está na segunda fileira, de baixo pra cima, o sétimo a partir da esquerda. Fonte: Digital Public Library of America


O contexto era o do nazismo, da perseguição aos judeus, da violência brutal, dos assassinatos misturados em ódio e diversão. O que um menino podia fazer? Como você reagiria?

 

O trecho abaixo é parte da introdução de Night (1958), livro de memórias de Elie Wiesel (1928-2016), Prêmio Nobel da Paz de 1986, sobrevivente dos campos de concentração nazistas. (A tradução do trecho é minha).

 

 

“Lembro-me daquela noite, foi a mais hedionda de minha vida:

 

‘…Eliezer, venha aqui, quero te dizer uma coisa... Só você... Venha, não me deixe só... Eliezer…’ [dizia, em ídiche].

 

Ouvia sua voz, captava o sentido de suas palavras e a trágica dimensão do momento, mas fiquei quieto.

 

Era seu último pedido, desejando que eu estivesse do seu lado em sua agonia, no momento que sua alma era arrancada de seu corpo dilacerado – e ainda assim não atendi seu desejo.

 

Eu estava com medo.

 

Com medo das porradas.

 

Foi por isso que fiquei mudo para seus gritos.

 

Em vez de sacrificar minha vida miserável e correr para junto dele, segurando sua mão, confortando-o, mostrando que ele não fora abandonado, que eu estava com ele, que eu sentia sua dor, fiquei quieto e mudo, pedindo a Deus que fizesse meu pai parar de chamar meu nome, que o fizesse parar de gritar. De tanto medo que eu tinha de me submeter à ira da SS.

 

Meu pai, de fato, não estava mais consciente. Apesar disso, sua voz assustadoramente suplicante continuava rompendo o silêncio e clamando por mim, por ninguém mais além de mim. 

 

‘E então?’ O soldado da SS tinha irrompido em fúria, e acertava meu pai na cabeça: ‘Fique quieto, velho! Fique quieto!’

 

Meu pai não sentia mais o impacto das bastonadas. Eu sim. E apesar disso, eu não reagia. Deixei a SS espancar meu pai. Eu o deixei sozinho, nas garras da morte. Pior: eu estava zangado com ele por fazer barulho, por ter gritado, por provocar a ira da SS.

 

‘Eliezer! Eliezer! Venha, não me deixe só...’

 

Sua voz tinha me alcançado de tão longe e de tão perto. Mas não me mexi.

 

Nunca vou me perdoar por isso. 

 

E também jamais perdoarei o mundo por ter-me empurrado contra o muro, por ter feito de mim um estranho, por ter despertado em mim os instintos mais baixos, mais primitivos.

 

Sua última palavra foi meu nome. Uma súplica. E não fui capaz de atendê-lo.”


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Freud deveria voltar 23 Nov 2022 7:06 AM (2 years ago)

 


Em 2020, a Netflix lançou uma minissérie intitulada Freud. Foi uma das melhores coisas de streaming daquele ano que viria a ser assolado pela pandemia. Fiquei esperando uma segunda temporada, mas não apareceu até agora. Enquanto espero, escrevo sobre o que vi.

 

É sintomático que a primeira cena da série é de charlatanismo. Não deixa de ser um chiste interessante (eu morri de rir). Aliás, o primeiro episódio intitulado Histeria é pródigo em chistes, ao mesmo tempo que a trama vai mergulhando no lado sombrio do humano. Será que o roteirista chefe dessa bagaça faz análise? Claro que sim.

 

Freud é um thriller psíquico em que a investigação dos atos violentos, de assassinatos, estupros e tais, no meio de um problema político envolvendo os laços de poder do império austro-húngaro, se intercala à investigação dos negócios da alma e a busca de um lugar ao sol pelo jovem psiquiatra. 

 

Num ambiente de mães corajosas e pais repressores, Sigmund Freud (Robert Finster), com dificuldade para pagar o aluguel, tomando chá de cocaína o tempo inteiro, tenta se estabelecer como psiquiatra, buscando um diferencial na careira como médico de comportamento.

 

Ele se apresenta para a anfitriã de uma festa, a condessa Sophia (bela e perigosíssima vilã) como um judeu médico visto pelos seus pares como desajustado, louco e charlatão. 

 

Tem um roteiro deliciosamente atrevido. Mexe e remexe com as teorias do dr. Freud. A trama vai sendo costurada dialogicamente, como num conto de Dostoiévski, fazendo uso também da estética de Arthur Schnitzler (que não por acaso aparece na trama), autor de Breve romance de sonho, em que Stanley Kubrick se baseou para fazer o filme De olhos bem fechados.

 

Toda a atmosfera da série, a fotografia, o cenário, a tonalidade dos mistérios, tudo, advém da estética de Schnitzler, cuja obra literária tem muito a ver com o universo da psicanálise. 

 

Na vida real, Freud também era amigo de Schnitzler. Numa carta, o pai da psicanálise chegou a dizer que ambos tratavam do mesmo tema, com propósitos diferentes. Na série, o roteirista achou um jeito de unir as duas mentes. E ficou fantástico. 

 

Os tormentos (como o do inspetor Kiss, que obedecera a ordem de seu superior - Georg von Lichtenberg – de matar inocentes na guerra austro-prussiana), os desejos reprimidos, a homossexualidade clandestina (Lichtenberg é amante do jovem tenente Riedl), as taras, as pulsões se manifestando nos corpos, sonhos e pesadelos povoam as noites de Viena.

 

Vemos a atmosfera sombria do que viria a ocorrer no século vindouro. Quase todos os homens têm cicatrizes no rosto, resultantes de duelos de esgrimas, mas que servem como metáfora dos traumas. 

 

Em uma das cenas, Joseph Breuer, orientador de Freud (na série e na vida real), diz ao aluno: “Nos mapas antigos quando não se conheciam os limites do mundo, desenhavam-se quimeras assustadoras e escreviam ‘Hic sunt dracones’, ‘aqui há dragões.’ Um perigo do desconhecido que não compreendemos. Mantenha distância.”

 

“E se eu quiser ser um cartógrafo? Um pioneiro?”, pergunta Freud.

 

Numa apresentação para doutores, ele expõe seu pensamento e demonstra o quanto era brilhante para criar metáforas, para puxar do abismo insondável de seu objeto de estudo as imagens mais significativas, embora ali, naquele momento, suas palavras não correspondessem ao que tinha para oferecer como prática.

 

“A histeria é uma emanação daquilo que chamo inconsciente. Eu sou uma casa. Está escuro dentro de mim. Minha consciência é uma luz solitária, uma vela ao vento, que cintila às vezes aqui, às vezes acolá. Todo o resto está nas sombras. Todo o resto reside no inconsciente. Mas as outras salas estão lá. Nichos, corredores, escadarias, portas, o tempo todo. Tudo que vive dentro de nós, tudo que perambula dentro de nós está lá, operando e vivendo dentro da casa que somos. Instinto, desejos, tabus, pensamentos proibidos, desejos proibidos, memórias que não queremos que as encontrem. Elas dançam à nossa volta na escuridão, nos atormentam e nos atiçam, interferem, assombram e sussurram. Elas nos assustam, nos adoecem, nos deixam histéricos.” 

 

Se ignorarmos o fator histeria, que deixou de ser importante nas linhas de investigação psicanalítica, a imensa casa como metáfora do inconsciente ainda vale.

 

Freud, como série de ficção, é um grande achado da Netflix. Dizem por aí que psicanalistas não curtiram muito a produção. Danem-se os psicanalistas (sintoma)! Eu, que não sou psicanalista nem porra nenhuma, fiquei fissurado nela. 

 

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A arte de imitar folhas (poema) 19 Jan 2022 3:07 AM (3 years ago)


Eu também fico assustado

Eu também tenho medo do mundo

Às vezes

Tenho medo do espaço infinito

Às vezes

Tenho medo dos astros

Dos pastos

Da gravidade

Do vento

Do ar

Das areias

Das águas

Do tempo

Tenho medo das coisas invisíveis 

E das coisas que só eu vejo e não posso descrevê-las

Porque eu seria louco

Tenho medo da loucura 

Da carne e da solidão

Tenho medo quando a sombra da terra engole a lua e o sol

E quando o céu soturno produz cores no escuro

Cores que não sei distinguir das que matizam meus olhos

Como se viessem de dentro de mim

Como se fossem luzes galácticas que iluminariam o mundo

Tenho medo de ser o sol de alguém

E se eu apagar?

Olhe

Assustar-se por ter medo é normal

Também me assusto

Às vezes

O primeiro susto é quando a gente nasce

A alma dá um pulo dentro da gente e a gente passa a existir

A gente nasce como quem brota

Toda mãe é uma primavera

Todo pai é um tenebroso outono de chuvas ácidas

Imagine

Um broto saindo da terra na selva, entre pés e bichos

Existindo

Imagine

A selva que é viver

Para além do mato

Na fauna humana, inventora de mundos

Na fauna humana, inventora de choques

Na fauna humana, inventora de toques

E lembranças dentro de lembranças

Dentro de sonhos

E restos de sensações que triscam a alma

E ela pula

E sabemos

Lembramos

Da existência

Tememos, e trememos, e bebemos, e dizemos só a verdade

A verdade é a única coisa que existe de verdade

A verdade foi criada por nós que criamos a nós mesmos

Antes de criar o mundo sobre o mundo já criado

Criamos a nós mesmos

Antes de criar o mundo sobre o mundo já criado

Cheio de bichos e pés e asas e nadadeiras e raízes sugadoras de seiva

Criamos a nós mesmos

E viscosidade e lama

E chamas e pingos

Criamos a nós mesmos

De líquidos que nos dissolvem e nos evaporam

E desaparecemos

Sem o medo, porque o medo fica

E desaparecemos

Sem o medo

E o susto é o prenúncio de quem vai nascer (como grilos)

E desaparecemos

Sem o medo, com susto

E desaparecemos

Sem o medo, porque o medo fica

A preparação para o medo

Às vezes

Porque há também a força que nos impulsiona para o destemor

Porque há também a força que governa o medo

Às vezes

Enquanto flutuamos como flocos e féculas

Enquanto flutuamos como seres helicoidais

Seres que se entrepenetram e se eternizam

Enquanto flutuamos como seres sempre com medo e assustados

Como se um sopro no ouvido

Como se um sussurro

Um urro baixinho, infrassônico

Como se a existência toda pelos espaços vazios

Entre os astros

Dissessem

Num susto

Eu também sou

Somos

Cromo

E quando me assusto, eu mudo de cor

Mudo, mudo

Mudo de cor

(Gilberto G. Pereira)

.,.

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Lourival Belém Jr. disponibiliza seus filmes no YouTube 4 Dec 2020 2:08 PM (4 years ago)

Lourival Belém Jr. é um cineasta documentarista de curta metragem daqui de Goiânia, que sempre esteve antenado com a renovação da linguagem do cinema. Geograficamente distante do main stream, ele nunca se afastou das inovações narrativas. 

Seu filme mais recente, O Turista no Espelho (2018, 26 min., colorido), é um exemplo disso. Sua obra vem sendo baixada no canal que leva seu nome no YouTube. Quem quiser apreciar, já estão lá filmes como Concerto da Cidade (Prêmio Fica 2005), Recordações de Um Presídio de Meninos (2009) e o belíssimo Quinta Essência (1982/2014), o mais poético de todos (em parceria com Ronaldo Araújo). 


Na próxima quinta-feira, 10 de dezembro, será a vez de O Turista no Espelho ser lançado no canal, filme experimental com uma onda dialógica que vai tecendo junto literatura, releitura cinematográfica, jornalismo, pajelança como protesto, turismo, discurso político, denúncia, num processo que se identifica com a estética relacional, em que ele vai juntando outras narrativas à sua própria, criando um universo crítico, novo e rico. 

 

É assim que ele dialoga com a literatura de Milton Hatoum, com o cinema de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, Iracema – Uma Transa Amazônica, de 1975, com linguagens publicitárias que, recriadas no escopo do cinema de Belém, denunciam com sarcasmo a voracidade do consumismo e das marcas registradas.

 

Há cenas que se estendem às cidades grandes como Rio de Janeiro, Goiânia e Brasília, para mostrar o fruto da desigualdade e da expulsão das pessoas da zona rural para as periferias urbanas. E a luta. O Turista é sobretudo a revelação das lutas, de suas preparações, como instrumento de sobrevivência, mais do que de conquistas. 

Como todos os outros filmes de Belém Jr, a estética é sinônimo de interferência política, que é a alma das artes contemporâneas, sobretudo as plásticas, a fotografia e o cinema documentário, além de um certo nicho da literatura e do cinema de ficção.

Estética e política


Lourival Belém Jr., cineasta goianiense

A linguagem experimental de O Turista oferece as perspectivas documentaristas de seu tempo, e o roteiro perfaz o mergulho do cineasta e sua mulher nas ramagens da sociedade profunda da Amazônia, comos os índios, os ribeirinhos e os sem-terra (marginalizados pelo poder e pela elite econômica, mas de fato fixados no coração da floresta). 

 

Eles viajam para esses lugares com uma câmera amadora na mão e mil sentimentos na cabeça (de indignação, de admiração, de dó, de impotência, de espanto, de integração, de reconhecimento, de distanciamento). 

Como turista, o cineasta não é mais aprendiz, como o fora Mário de Andrade, que também viajou pelos Norte e Nordeste brasileiros, registrando narrativas e informações sobre o Brasil profundo. Como turista, Belém vê a si mesmo nas pessoas que ele filma, embora sinta-se separado delas pela linguagem e pelos costumes que foram sendo alijados do Brasil oficial ao longo dos séculos.


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Georges Bataille sobre museu 4 Jun 2020 9:18 AM (5 years ago)

                                                                                                                                                          Foto: Gilberto G. Pereira
Três músicos, óleo sobre tela, de Pablo Picasso, (1921): acervo da Fundação Mrs. Simon Guggenheim, em exposição no Museu de Arte Moderna, NY, em 2016.

De acordo com a Grande Enciclopédia, o primeiro museu no sentido moderno da palavra (significando o primeiro acervo público) foi fundado na França pela Convenção de 27 de Julho de 1793. A origem do museu moderno está, portanto, ligada à invenção da guilhotina.

O museu é como os pulmões de uma grande cidade. Todo domingo, o público mergulha como sangue dentro do museu e emerge purificado e fresco. As pinturas não são outra coisa senão superfícies mortas. 

É dentro do público que o jogo de fluxo de luzes e radiação, tecnicamente narrado pelos críticos autorizados, é produzido. É interessante observar o fluxo de visitantes, visivelmente guiado pelo desejo, se assemelhar às visões celestiais que arrebatam aos olhos.

O museu é o espelho colossal no qual o homem, finalmente se contemplando de todos os lados e se encontrando literalmente num objeto maravilhoso, abandona a si mesmo ao êxtase expresso na imprensa literária.

Georges Bataille, “Museum,” Outubro, no. 36 (1986), p. 25; tradução para o inglês de Annette Michelson; publicado primeiramente no Documents 2, no. 5 (1930), p. 300. (Tradução para o português: GGP). 

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Inglês renovado: “Memórias póstumas de Brás Cubas” ganha nova tradução nos EUA 3 Jun 2020 9:58 AM (5 years ago)




O escritor americano Dave Eggers, aquele de livros como Uma comovente obra de espantoso talento e O círculo (que virou filme com a hermiônica Emma Watson), escreveu o prefácio da nova tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas para o inglês (“The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”, por Flora Thomson-DeVeaux), cuja edição saiu agora em junho nos EUA, pela Penguin Classics.

O prefácio foi publicado na revista The New Yorker desta semana. Se há algo que Eggers não tem é medo de adjetivos. São muitos jogados sobre o romance do Bruxo do Cosme Velho: sagaz, um dos mais brilhantes, mais divertidos, mais vivos atemporais, cintilante, absoluto, presente glorioso, muito engraçado, inimitável, mordaz, melancólico, autodilacerante e romântico. Isso só nos primeiros parágrafos.

Trata-se de um texto brilhante, entusiasmado, laudatário até, mas muito verdadeiro, que chama o leitor anglo-saxônio para a arena das leituras novamente de um autor sem igual, conforme ele diz. O título do artigo é Redescobrindo um dos livros mais brilhantes já escritos (leia o texto no original). 

Eggers começa falando assim: 

“O talento sagaz pula séculos e hemisférios. Não fica empoeirado, e, quando acerta a mão, não envelhece. “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Joaquim Maria Machado de Assis, é um desses casos. Esquecido por muitos, é um dos livros mais brilhantes, mais divertidos e, por isso mesmo, um dos mais vivos e atemporais já escritos.

É uma história de amor – muitas histórias de amor, na verdade – e é uma comédia de classes e de costumes, e de ego, e é uma reflexão sobre um país e um tempo, e um olhar pleno sobre a mortalidade, e ainda por cima é uma exploração íntima e arrebatadora da arte de narrar.

É uma cintilante obra-prima, e uma alegria absoluta como leitura, mas que, por alguma razão obscura, quase nenhum falante de inglês no século 21 a leu (eu mesmo só vim ler pela primeira vez recentemente, em 2019).

Mas ele sobrevive, e deve ser lido, pela música de sua prosa e, mais do que qualquer coisa, por seu gracejo formal. A nova tradução, feita por Flora Thomson-DeVeaux, é um presente glorioso para o mundo, porque ela cintila, porque ela canta, porque é muito engraçada e procura captar o estilo inimitável de Machado, a um só tempo mordaz e melancólico, autodilacerante e romântico.”

Breves e lúcidos capítulos

Em seguida, contextualiza a trama, tece comentários sobre o personagem, sobre os capítulos e a sagacidade do narrador.


“Seu narrador, Brás Cubas, está morto. Ele conta a história de sua vida do túmulo, e, talvez porque não tenha nada a perder – estando morto e tudo -, narra a história exatamente do jeito que quer, a convenção que se exploda. O romance se desdobra em breves e lúcidos capítulos, elucidado além disso com infindáveis referências do narrador e dúvidas de si mesmo.

‘Começo a arrepender-me deste livro’, escreve Brás Cubas em um capítulo chamado O senão do livro (‘The Flaw in the Book’). ‘Não que ele me canse”, continua. “Eu não tenho que fazer; e, realmente, expelir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade.’

A história, no seu fulcro, é quase convencional, um triângulo amoroso aristocrático do século 19. Brás Cubas flutua pelo meio das classes endinheiradas do Rio de Janeiro, mas não tem vontade de se casar (obsessão da irmã), nem tem ambição de fazer carreira no funcionalismo público (desejo do pai).

Ele deixa passar a chance de se casar com a bela Virgília e assim ser catapultado para a vida pública com a influência do poderoso pai dela. Em vez disso, um honrado homem chamado Lobo Neves é que ganha a mão de Virgília e o apadrinhamento do sogro. E só então Brás Cubas começa a se interessar por ela. 

Eles iniciam um caso e tentam – sem dificuldade – manter a relação às escondidas do assaz despreocupado marido. Logo, todo mundo na sociedade carioca parece saber, e o perigo da descoberta só faz os amantes se aproximarem ainda mais.

Enquanto isso (do túmulo), Brás Cubas contempla o significado da vida, auxiliado pelo amigo Quincas Borba, que tenta popularizar um sistema filosófico chamado Humanitismo, destinado, escreve Machado, ‘a arruinar todos os demais sistemas.’ No centro da doutrina está a crença na retidão de todo ser humano. 

Brás Cubas admite que a doutrina é panglossiana, mas encontra um certo conforto na noção radical de que os humanos deveriam ser permitidos a fazer qualquer coisa que eles naturalmente fazem, de que devemos fazer qualquer coisa que queremos fazer – com uma reverência especial ao ato de fazer mais humanos. 

‘O amor, por exemplo’, escreve, ‘é um sacerdócio, a reprodução um ritual. Como a vida é o maior benefício do universo... segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma ocasião de galanteio, é a hora suprema da missa. Porquanto, verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.’

Machado meneia entre a história de amor do livro e seus interlúdios metafísicos com facilidade, em parte porque, embora o livro seja sobre coisas sérias – amor, a vida em si, a finalidade da morte –, nunca se leva a sério.

No capítulo IV, A ideia fixa, Machado inicia uma grande analogia comparando menos esforços humanos para aqueles que ecoam através das eras. ‘Mal comparando, é como a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã... Não, a comparação não presta.’

Os títulos dos capítulos em si já são desconcertantes. Um capítulo, habilmente chamado de Triste, mas curto, é seguido de outro chamado Curto, mas alegre, o que ambos são. Há um capítulo dedicado às botas, um outro às pernas do autor, enquanto outro é chamado de Que não é sério.

O capítulo CXXX é intitulado Para intercalar no capítulo CXXIX, e no seu final, o autor pede que o leitor o coloque entre a primeira e a segunda frase do capítulo anterior. Há também uma longa alucinação envolvendo hipopótamos.

De alguma forma, nenhuma das gags e diversão intertextual faz diminuir a força da história. O romance entre Brás Cubas e Virgília é convincente e selvagemente lírico. O sentimento que temos pelo ignorante Lobo Neves é verdadeiro, e o crime cometido pelo narrador e Virgília contra ele nunca é punido – nem na vida, nem na morte.

E esta é a chave. Este é um livro ateísta, em que não há julgamento que não seja o da consciência, e no qual o ofensor mente sozinho, num caixão permeado de vermes, recontando sua vida e seus fracassos sem qualquer consequência pesada. É engraçado também. É completamente original e diferente de todos os livros que vieram depois dele e que possam, conscientemente ou não, ter se influenciado por ele.”

Experimentar

E aí, Eggers segue seu texto avaliando o quadro geral dos clássicos, mostrando o quanto Machado está inserido nesse bojo de gênios, o quanto ele não está só, mas apontando sempre para o passado. Para frente de Machado, não há nada igual, como ele já disse. 

O que temos nos dias de hoje são romances de autores que se levam a sério demais, diz Eggers, e não conseguem experimentar nem na forma, nem no conteúdo. Na sua avaliação, na contemporaneidade, só temos autores que não experimentam a linguagem. 

Segundo o autor, ele participou de um concurso literário alguns anos atrás e havia mais de 400 romances para ler. Desses 400, algumas dúzias eram engraçados, mas apenas alguns eram divertidos de ler, e desses, apenas dois, exatamente dois, “eram, de modo significante, experimentais.”

“Se isso não for a indicação de um generalizado medo do novo, uma hesitação em aproveitar oportunidades, e uma assustadora e mal-orientada autosseriedade sobre o romance, não sei bem o que é”, diz ele.

“Não se trata de dizer que todos os romances, ou a maioria deles, deveriam ser, ou podiam ser, tão divertidos quanto este. Mas não ia doer ter mais alguns que permitissem os humanos – personagens, leitores, autores também – rirem. Negar as piadas na vida, e a piada da vida em si, é muito triste”, finaliza.

...//...

Dave Eggers é autor de livros como O que um cidadão pode fazer? e O monge de Mokha (em tradução livre). Ele é o co-fundador do Congresso Internacional das Vozes da Juventude.

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Breve história da humilhação: fragmento do livro México, de Erico Verissimo 28 May 2020 2:07 PM (5 years ago)


Em seu livro de viagem México (1957), Erico Verissimo (1905-1975) conta a história (à qual ele dá o título irônico de O Herói) de um coronel do exército legalista na Revolução de 1910, que foi pego pelos revolucionários comandados por Emiliano Zapata, julgado sumariamente e condenado à morte por fuzilamento.

E aí, o que Verissimo narra é digno de nota justamente por mostrar como nenhuma bravura consegue superar a capacidade humana de criar mecanismos de humilhação e maldade. Às vezes, a operação é simples, como esta, mas eficaz. Verissimo ouviu o relato do grande pintor mexicano David Alfaro Siqueiros (1896-1974).

Ao ser feito prisioneiro, “o coronel não se defendeu, não pediu clemência, não pronunciou uma palavra durante o julgamento. Recebeu a sentença sem mover sequer um músculo da máscula face. Saiu da sala pisando firme, a cabeça erguida, o porte ereto. Na prisão, onde aguardava com outros condenados a execução da sentença de morte, recusou-se a receber a esposa, que, tendo sido informada do acontecido, viera desesperada e em pranto pedir aos revolucionários que poupassem a vida do marido. ‘Retire-se!’, gritava este sem a mirar. ‘Não peço, nem quero clemência. Volte para casa!’

Numa dada madrugada, os guardas levaram os priosoneiros para o local de fuzilamento. Na porta da prisão, estavam as mães, as mulheres e os filhos dos condenados, inclusive a mulher do coronel. Quando eles passaram, o clamor começou e os acompanhou até o local do fuzilamento. 

“A esposa do coronel caminhava ao lado do marido, pendurava-se-lhe nos braços, no pescoço, beijava-lhes as mãos, que ele tinha amarradas às costas, mas o homem continuava a caminhar imperturbável, como se ela não existisse.”

A caminhada, no entanto, era longa, e a postura do coronel foi mudando aos poucos no percurso. “O homem agora não caminhava teso; a cabeça lhe caía sobre o peito e seus passos eram menos firmes. Ele já olhava para a esposa com um misto de ternura e pena.”

Ali, ele já estava quebrado. Talvez haja valentões que suportem mais, ao saberem que vão morrer. Mas ali o bravo coronel já estava partido ao meio. “Sua expressão transformou-se em terror quando, no alto do cerro, ele viu o primeiro companheiro cair diante do muro, crivado de balas. Haviam-no deixado para o fim, e ele tinha de olhar ou pelo menos ouvir o fuzilamento dos outros, em meio aos gritos de desespero das mulheres.”

“Clareava a barra do horizonte. Galos amiudavam. Soprava um ventinho frio. Ouviu-se nova descarga. O fuzilado tombou. Seu sangue respingou o muro. O tenente aproximou-se do corpo, tirou o revólver e deu o tiro de misericórdia na cabeça do agonizante.”

“Nesse momento, o orgulhoso coronel soltou um urro e atirou-se no chão, chorando como uma criança, e começou a pedir em altos brados que não o matassem. Beijou, babujou a mão do comandante do pelotão, enlaçou-lhe as pernas como uma fêmea desprezada e louca de paixão, e acabou rolando na poeira, o corpo dobrado, os joelhos contra o peito, a cabeça entre as mãos, recusando a erguer-se e marchar para o muro como um bravo.”

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A gastronomia segundo Brillat-Savarin 2 May 2020 1:39 PM (5 years ago)


Jean-Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826) foi um juiz francês que viveu num dos períodos mais conturbados de seu país, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do XIX. A Revolução Francesa quase lhe tirou a cabeça, mas não foi por isso que ele entrou para a história.

Quem o colocou lá foi seu livro A fisiologia do gosto (Companhia das Letras, 2005, 384 páginas), um tratado bem-humorado e cheio de verdades sobre a gastronomia, que o colocou na boca de personagens de cinema e nas conversas de chefs de cuisine no mundo inteiro.

Para o autor, todos os campos do conhecimento humano acabam tangenciando o universo gastronômico, desde a física, a história natural, a química, a própria culinária até o comércio e a economia política. Para falar de gastronomia, ele usa todas essas referências, e seu texto enriquece com isso.

“A influência da gastronomia se exerce em todas as classes da sociedade; pois se é ela que dirige os banquetes dos reis reunidos, também é ela que calcula o número de minutos de ebulição necessários para que um ovo fresco seja cozido ao ponto”, diz.

Sinceridade e graça

Segundo Brillat-Savarin, os conhecimentos gastronômicos são necessários a todos os homens, embora os mais ricos sejam os que mais precisam deles em função de suas relações amplas dentro da sociedade, seus encontros políticos, posturas diplomáticas e reuniões de negócios. Mas são úteis também ao homem simples, pelos laços de amizade que esse conhecimento proporciona, ao saber fazer uma boa comida.

Publicado originalmente em 1825, um ano, portanto, antes de o autor falecer, A fisiologia do gosto é um livro peculiar do gênero pelo fino senso de humor de Brillat-Savarin. As definições de cada sensação ou de determinadas posturas são sinceras, mas escritas de forma graciosa. 

Ele define o apetite, por exemplo, como o monitor do corpo que avisa quando a contínua perda de nutrientes ameaça parar o funcionamento orgânico: “O apetite se anuncia por um certo langor no estômago e uma leve sensação de fadiga”, comenta.

Cegos gastronômicos

Nesse ritmo de conversa e ensinamento, o autor vai pontuando a complexa engrenagem da gastronomia. Fala dos sentidos, incluindo um sexto, que ele chama de ‘genésico’ ou ‘amor físico’, cujo estímulo pela boa comida é responsável por grande parte do prazer que o homem tem ao se alimentar, chegando próximo ao prazer do orgasmo. Mas adverte que nem todos são dotados de boa língua.

A língua de alguns desafortunados, diz ele, “é mal provida de terminações nervosas destinadas a absorver e apreciar os sabores. Estes suscitam-lhes apenas uma sensação obtusa; em relação aos sabores, são como cegos em relação à luz”, finaliza. 

Como exemplo de ‘cegos’ gastronômicos, Brillat-Savarin cita Napoleão Bonaparte, que “comia depressa e mal”. Neste caso, o autor demonstra aqui a vocação da gastronomia para a slow food em contraposição à fast food, que se tornou quase padrão no mundo veloz de hoje.

O livro passeia pelas dicas e receitas de como escolher um bom restaurante, os tipos de bebidas e suas combinações, fala de especialidades, da sede, da fritura, do prazer da mesa, da digestão, do sono, dos sonhos, da obesidade, da magreza, do jejum, da morte, da gastronomia clássica e até do fim do mundo. 

O que não se sabe é o que ele tinha comido quando lançou sua filosofia sobre os últimos dias sobre a terra. Em todo caso, nessas reflexões, ele diz que não vale a pena imaginar grandes catástrofes sobre o mundo, porque nada nesse universo conspiraria tão grandiosamente sobre nós, pois “não valemos tamanha pompa”.


Aforismos

O autor abre seu livro com uma série de aforismos que servem como trilha rumo ao que o leitor poderá encontrar nas páginas seguintes. 

1) O universo nada significa sem a vida, e tudo o que vive se alimenta.

2) Os animais se repastam; o homem come; somente o homem de espírito sabe comer.

3) O destino das nações depende da maneira como elas se alimentam.

4) Dize-me o que comes e te direi quem és.

5) O criador, ao obrigar o homem a comer para viver, o incita pelo apetite, e o recompensa pelo prazer.

6) A gastronomia é um ato de nosso julgamento, pelo qual damos preferência às coisas que são agradáveis ao paladar em vez daquelas que não têm essa qualidade.

7) O prazer da mesa pertence a todas as épocas, todas as condições, todos os países e todos os dias; pode se associar a todos os outros prazeres, e é sempre o último para nos consolar da perda destes.

8) A mesa é o único lugar onde jamais nos entediamos durante a primeira hora.

9) A descoberta de um novo manjar causa mais felicidade ao gênero humano que a descoberta de uma estrela.

10) Os que se empanturram ou se embriagam não sabem comer nem beber.

11) A ordem correta do comer é dos pratos mais substanciais aos mais leves.

12) A ordem correta do beber é dos vinhos mais suaves aos mais capitosos e perfumados.

13) Afirmar que não se deve mudar de vinhos é uma heresia; o paladar se satura; e, depois do terceiro copo, o melhor vinho não provoca mais que uma sensação obtusa.

14) Uma sobremesa sem queijo é uma bela mulher a quem falta um olho.

15) Aprende-se a ser cozinheiro, mas se nasce assador.

16) A qualidade mais indispensável do cozinheiro é a pontualidade: ela deve ser também a do convidado.

17) Esperar muito tempo por um conviva retardatário é falta de consideração para com os que estão presentes.

18) Quem recebe os amigos e não dá uma atenção pessoal à refeição que lhes é preparada não é digno de ter amigos.

19) A dona da casa deve sempre ter certeza de que o café é excelente; e o dono, de que os licores são de primeira qualidade.

20) Entreter um convidado é encarregar-se de sua felicidade durante o tempo todo em que estiver sob nosso teto.

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Gastronomia: o poder do alimento como vínculo social 1 May 2020 7:06 AM (5 years ago)

                                                                                                                                                                             Foto: Divulgação
L’entrecôte: prato francês feito por um bistrô que virou moda no mundo das franquias (e já está em Goiânia)


Parênteses: Escrevi esta pequena reportagem em 2010, publicada no jornal Tribuna do Planalto, em Goiânia. Mas o jornal renovou seu conteúdo online, e o texto se perdeu. Então decidi ressuscitá-lo aqui. 

A única coisa que desatualizou a informação sobre o restaurante do chef André Barros, que estava prestes a ser inaugurado na ocasião. Foi de fato inaugurado, mas já fechou as portas. As ideias de Barros, no entanto, e o modo como ele vê a gastronomia continuam valendo. 

O texto entra aqui pelo vínculo com a literatura, já que cito três nomes importantes para quem gosta de ler. Feita a ressalva, boa leitura!

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Quem nunca foi convidado para um almoço ou um jantar? Quem, mesmo que tenha sido na infância, não ofereceu a alguém um pedaço de pão com o intuito de fazer amizade, desfazer mal-entendidos? 

A comida sempre foi um elemento poderoso nas relações sociais. Elemento essencial da vida, é uma força capaz não só de matar a fome, mas também de criar vínculos entre pessoas.

Como laço de convívio social, o alimento pode ser usado para nutrir uma amizade, mas também para desfazer vínculos, pode inclusive virar armadilha para capturar o inimigo. É tão importante na cultura anglo-saxã que a frase usada pelos ingleses para dizer que a comida não lhe caiu bem é “the food didn’t agree with me” (“a comida não concordou comigo”).

De acordo com o chef de cozinha, André Barros, a gastronomia não é privilégio dos profissionais, pelo contrário, faz parte de uma rede de sociabilidade que leva as pessoas às casas umas das outras ou aos restaurantes. 

“O fechamento de um contrato de negócios, o início de um namoro, a visita à casa da namorada ou do namorado para conhecer os futuros sogros, nessas ocasiões sempre há uma boa comida para acompanhar”, diz Barros.

“Quanto melhor for o cardápio e o tempero, com maior naturalidade a conversa fluirá, mais harmônicos ficarão os ânimos, e mais positiva será a impressão entre as partes”, acrescenta o chef.

A cerimônia do alimento na cultura ocidental atravessou muitos costumes e valores até chegar aos dias de hoje. Agora concorre com um tipo de alimentação pouco agregador, que é a fast food (alimentação rápida). 

A fast food prega o contrário da harmonia. As pessoas não conseguem se relacionar na hora da refeição. É rápido demais, prático, e o estômago se sacia com a mesma velocidade das conversas ralas, quando há alguém com quem conversar.

É contra esse massacre que entra o papel da gastronomia. Ela preza pelo que se chama slow food (alimentação saboreada sem pressa), que no Brasil começa a reagir sobre o avanço do pouco mastigar das comidas rápidas. 

Vontade de voltar

A gastronomia “é o conhecimento fundamentado de tudo o que se refere ao homem, na medida em que ele se alimenta”, diz Jean-Anthelme Brillat-Savarin, um juiz francês do século XVIII, que escreveu A fisiologia do gosto, livro que se tornou um clássico da área.

Brillat-Savarin era um amante da boa comida, mas também um entusiasta da amizade, da moderação e do prazer adquirido numa mesa bem-posta. Muito antes dele, no entanto, antes mesmo do nascimento da cultura ocidental, a alimentação como vínculo social já era compreendida e cultivada em várias civilizações, como na Grécia Antiga. 

Segundo Junito de Souza Brandão, em seu livro Mitologia Grega (Vol. I), determinados alimentos têm um poder de fixação muito grande. Quem os come não resiste à vontade de voltar ao local onde os comeu para saboreá-los de novo. 

O autor cita o mito grego de Perséfone que foi raptada por Hades, o senhor dos mortos e deus da riqueza. A pedido de sua mãe Deméter (Ceres, deusa da terra cultivada, de onde vem a palavra cereal), Perséfone teria de voltar à terra, junto aos mortais. 

Hades não podia negar a solicitação de Deméter, mas não queria ficar sem ver a amada. Então pediu a ela que comesse uma semente de romã. Com isso, mesmo voltando para junto da mãe, Perséfone teria de retornar e ficar um terço do ano nas “terras brumosas do Hades”, num eterno ciclo de idas e vindas.

Segundo Brandão, o poder de fixação de certos alimentos ultrapassa o limite do simbólico, e chega aos dias de hoje ajudando a manter boa parte das relações sociais, do nascimento de novas amizades. 

Brandão também cita Câmara Cascudo, estudioso da cultura popular brasileira, para dizer algo semelhante ao que já dissera da cultura grega: “Quem come e bebe certos alimentos ou líquidos não pode esquecer ou deixar de regressar aos lugares onde os consumiu.”

Na lista de comidas e bebidas que têm esse poder de fazer o apreciador regressar, diz Brandão, incluem o Cabrito assado do Cáucaso, o “Puchero” da Argentina, a “Olla podrida” da Espanha, o “Porridge” da Escócia, o Iogurte da Bulgária, o Pato de Rouen (cidade próxima a Paris), o “Coq au vin du Languedoc”, o Vatapá e o Caruru da Bahia, a Água da Fontana di Trevi, em Roma, o Açaí de Belém do Pará, entre muitos outros de tantas outras regiões. 

Para o açaí, existe até uma quadrinha que reforça o poder de fixação do alimento: “Quem vai ao Pará,/ parou./ Bebeu açaí,/ ficou.”

André Barros não foi ao Pará, mas viajou para bem próximo. Foi para Manaus, local aonde retorna sempre. Segundo o chef, toda vez que viaja para lá, a trabalho ou não, vai ao restaurante preferido comer uma Caldeirada de Tambaqui.

Este, no entanto, não é o único prato que faz Barros chegar a Manaus já com água na boca. “O Tacacá e o Filé de Pirarucu com Tucupi (caldo da mandioca brava) são outros dois pratos deliciosos. Gosto muito dessa cozinha regional brasileira”, enfatiza.

Respeito pela comida

Quando o assunto é gastronomia, Barros não perde o fio da meada. Começa logo a falar de seus projetos de culinárias, de receitas e até de um restaurante que está prestes a inaugurar em Goiânia, o Malauí, nome de um país do sudeste da África, de origem banta, que quer dizer “fogo”, “chama”.

A ideia de Barros é justamente fazer em Goiânia o que, segundo ele, ainda existe pouco em termos de gastronomia, um espaço que valoriza também a arte de apreciar o convívio social. 

O restaurante que está prestes a inaugurar, com área climatizada de 60 lugares, oferecerá um lounge e um ambiente para pocket shows, como jazz, blues, bossa nova, performance de DJs e stand-up comedy.

Além disso, haverá um fumoir, com seleção de charutos cubanos e nacionais, e uma pequena butique gastronômica na recepção. Dentro desse projeto, Barros quer dar continuidade àquilo que já sabe fazer muito bem, comida que desperte nas pessoas a vontade de voltar para comer mais.

Trabalhando atualmente no restaurante do Country Clube, o Bobó de Camarão que ele faz lá é muito apreciado. É um bobó mais encorpado, com lascas de coco fresco e castanha do Pará. 

“Há pessoas que acompanham o boletim do clube e vão lá pelo menos uma vez por mês. E se têm uma visita aqui em Goiânia, levam para conhecer essa releitura que fiz do bobó”, comenta Barros, orgulhoso.

Orgulho maior, ele sentiu quando o empresário carioca Max Araújo veio do Rio de Janeiro para fechar sociedade com ele na abertura do Malauí. Araújo é o investidor no negócio de mais de R$ 1 milhão. 

Araújo também é um grande connoisseur de gastronomia, tendo possuído restaurantes bem frequentados no Rio de Janeiro, além de já ter viajado para muitos países. Por onde passa, traz uma história de vínculo social proporcionado pela gastronomia.

Araújo e Barros, portanto, comungam os mesmos ideais. Ambos mantêm um profundo respeito pela comida, acham inclusive que ela tem sentimento, na medida em que é feita com amor, envolta a afetividades, elementos que acabam sendo transmitidos junto com os ingredientes à pessoa que vai comer. 

O caso mais ilustrativo dessa história de vínculos por meio da comida é a própria visita de Araújo a Goiânia, quando Barros ofereceu um jantar para receber o sócio. Araújo aproveitou a ocasião para convidar as pessoas que ele gostaria de agradecer e de conhecer melhor. “O resultado foi uma reunião de conversas agradáveis”, diz.

Ecos agradáveis

A experiência internacional dos dois também dá boas histórias de sociabilidade construída em torno de um bom prato, que também reforça a mística da fixação. Neste caso, Araújo cita um pequeno restaurante (bistrô) chamado L’entrecôte, em Paris (vale abrir um parêntese aqui para explicar que no fim de 2009, já estava chegando ao Brasil uma franquia desse bistrô, e atualmente, em pleno 2020, há uma rede gigantesca dele espalhada pelo país, que seguiu o exemplo do mundo inteiro; mas Araújo estava se referindo era mesmo à matriz, em Paris).

As pessoas ficam duas horas numa fila, muito bem organizada e plena de atenção, no L’entrecôte, para comer filés em tiras, acompanhados de um molho (cuja receita é mantida em segredo) e batatas fritas em caracol. “Sempre que vou a Paris me sinto atraído pelo restaurante, para comer aquele prato”, diz.

Um dos diferenciais do “L’entrecôte, diz Araújo, é o atendimento feito pelas duas chefes, que vão de mesa em mesa conversar com cada um dos clientes. “Elas são impressionantes. Têm um bom papo e são atenciosas. Por isso, já vi gente do mundo inteiro lá. Vão para comer, mas também para fazer amizade, conversar. Ou seja, a comida é o poder desse local”, comenta.

As histórias de Barros e Araújo são tantas e tão variadas, com cheiros, sabores e ambientações diversificados que, para quem escuta, ficam como ecos agradáveis na memória. Eles reforçam que o Malauí, com previsão de ser inaugurado no começo de dezembro (2010), terá espaço para todas essas delícias que giram em torno da gastronomia.

O Brasil tem uma afabilidade natural, e a comida faz parte dela. A feijoada e o churrasco, por exemplo, são manifestações populares de reuniões gastronômicas. Quem se propõe a conhecer o país e não se interessar por esses dois grandes pratos não chegará a tocar na essência do brasileiro. 

Por ouro lado, numa descrição mais sofisticada da gastronomia, um de seus elementos é a moderação, conforme lembra Barros. “Comer, sim, se empanturrar, não”, diz. Segundo o chef, em termos de variedade gastronômica, o Brasil ainda precisa aprender muito. Já em termos de ingredientes, é um dos mais ricos do mundo. 

O que falta é a exploração dessa riqueza. “Mas isso está melhorando. Hoje em dia, há pessoas que viajam atrás de comida, os chamados fooders, que vão a festivais conhecer a comida de um chef, tomar um vinho diferente. São pessoas que vão à feira, pesquisam ingredientes, conversam umas com as outras, descobrindo o país. Neste sentido, estamos vivendo um boom enograstronômico”, diz Barros.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, em 20/06/2010)

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Rubem Fonseca: carnaval, livros, acúmulo e angústia 29 Apr 2020 3:12 PM (5 years ago)

                                                                                                                     Foto: Zeca Fonseca/Divulgação
Rubem Fonseca (1925-2020): suas palavras permanecerão vivas por muito tempo, vivas e pulsantes na memória do leitor

O carnaval é o período da mistura de cores, da mescla de máscaras e almas que constroem a tessitura dramática de todos os contos e romances de Rubem Fonseca, e que tece de igual modo o imaginário social do Brasil. 


A literatura de Fonseca vem marcada pela insígnia do carnaval desde o começo. Não por acaso, o primeiro conto de Os prisioneiros, seu primeiro livro, de 1963, tem como título Fevereiro ou março.

De condessas a prostitutas, de punguistas a executivos, analfabetos e poliglotas, loucos e médicos, polícia e bandido, gente do morro e moradores solenes do Leblon e Copacabana desfilam em toda sua obra como quem passeia em carros alegóricos.

Neste pequeno texto, discorrerei sobre algumas questões da literatura fonsequiana produzida nas décadas de 1960 e 70. Com uma variação ou outra, é ela que dará o tom nas décadas seguintes até o fim. E para fazê-lo, nada melhor do que a imagética do carnaval e sua verve de misturas.

Em um dos contos de Lúcia McCartney, a terceira coletânea do autor, de 1969, o narrador diz que num baile de carnaval era “tudo misturado, puta, mãe de família, donzela, artista, estudante, ratazana de praia, filha da mamãe, comerciária, vedete, grã-fina, manicure. Mas o que tinha mais mesmo era puta. Tava assim de puta.” 

Sua estética é isso, passa pela pluralidade. Mineiro de Juiz de Fora, radicado no Rio, Rubem Fonseca morreu no dia 15 de abril de 2020, aos 94 anos. Mas antes de partir, ao longo da vida criativa, construiu um legado estético muito importante para a literatura brasileira. 

Autor de 32 livros, entre contos, romances e um de ensaios, Fonseca produziu uma obra que sai das entranhas cariocas para expressar o espectro social brasileiro. Seus contos respiram as mazelas e a festa. 

Estética do acúmulo

Tudo na literatura de Fonseca aparece como jorro, por acúmulo. As citações, por exemplo, estão em todos os livros desde o começo, e surgem como erva daninha em terra fértil. Uma das funções é a ironia. “Todo mundo só sabe nomes e datas, e epígrafes”, diz um dos personagens (A opção, in: A coleira do cão).

Esse tipo de ironia chegou ao ponto máximo quando, no romance Buffalo & Spalanzani, o narrador cita Rubem Fonseca (narrativa narcisista). Os principais personagens são leitores contumazes ou mesmo escritores. 

“Ermê olhou as estantes cheias de livros” (Nau Catrineta, in: Feliz ano novo). “Acordado a noite toda. Livro aberto em cima do peito” (Zoom, in: Lucia McCartney). “Via televisão, lia, dormia” (O outro, in: Feliz ano novo).

Se catássemos as citações de autores e títulos ao longo de contos e romances, ergueríamos uma biblioteca inteira.  Há algo de estético nisso. Em alguns contos, os livros giram nos ambientes da história como circulariam ingredientes de um apetitoso prato numa cozinha - causando efeitos estimulantes nos leitores.

No conto A matéria do sonho (conto incrível e merecedor de atenção pela atualidade de sua proposta estética, pela intrigante relação entre homem, tecnologia e desejo), o narrador cita uma lista com mais de 100 livros.

Há também alguma coisa de exibicionismo nisso, por um lado, e de generosidade, por outro. Há algo de sugestivo, como se dissesse ‘hei!, leia esses livros aí pra ver se fica mais culto, mais educado, mais inteligente, mais interessante, com mais repertório, com mais conteúdo, com mais possibilidades de aprender alguma coisa para além da organicidade que emana de minhas narrativas.’ 

E, ao mesmo tempo, todo esse fluxo de citações é uma transfiguração da afetação da classe média. Neste caso, não só livros, mas o hábito de falar frases ou trechos de frases em inglês aparecem como efeito de comicidade e do ridículo.

Técnica inovadora

Quando surgiu na década de 1960, Rubem Fonseca foi considerado um renovador da prosa brasileira. Chamou a atenção da crítica pelo experimentalismo, misturando linguagem de cinema e de teatro aos procedimentos literários e uma profunda relação com o vocabulário do senso comum.

Os críticos chamaram isso de técnica inovadora. Fábio Lucas, em resenha da época, disse que a literatura de Fonseca inovava porque trazia expressões feitas “por meio de elipses, criando novos signos, organizando uma semiologia própria” - segundo cita Sergio Augusto, por ocasião do relançamento da obra completa do autor pela Editora Agir (que Augusto organizou, em 2009). 

Fonseca imprimiu com precisão cenas do cotidiano, abertas, que apenas sugerem múltiplos desfechos, como se o leitor acabasse de chegar a um local onde alguma coisa estivesse acontecendo e saísse de lá antes do fim, só ficando com o “como estava acontecendo” pulsando na memória recente. 

Mesmo lendo agora, o leitor pode sentir a mesma sensação. A técnica não envelheceu. As tramas são feitas numa naturalidade que plasma a violência, os desejos e a indiferença social. E a forma continua inteira, atualíssima. 

Como autor, Fonseca nasceu tarde, mas já nasceu maduro. Os prisioneiros (1963) foi publicado quando ele tinha 38 anos. A crítica chamou o livro de primor.

As narrativas são concisas, cuja economia de movimento pode ser descrita tal como fez o advogado Mandrake, no conto Dia dos namorados, em Feliz Ano Novo (1975), quando diz: “(Sou) Mandrake, uma pessoa que não reza, e fala pouco, mas faz os gestos necessários.”

(É bom lembrar que Mandrake viria a aparecer em três romances, A grande arte, de 1983, E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto, de 1997, e o homônimo Mandrake, de 2005, além de em vários contos, mas sua primeira aparição fora em 1969, no conto O caso de FA, do livro Lúcia McCartney.)

Os finais ficam em aberto, com uma surpreendente atualidade e relevância, muitas vezes desenhando situações que viveríamos hoje com mais intensidade. O leitor fica meio que preso no suspense da trama cujo desfecho se realiza sempre na contramão da expectativa (anticlímax).

“A realidade do sr. Ruben Fonseca é inquietante, ou, pelo menos, ele sabe mostrar o que existe de inquietador sob as aparências exteriores da realidade”, diz Wilson Martins, em resenha publicada no jornal O Estado de S. Paulo, em 1° de fevereiro de 1964. 

Apalpando a vida

Em A coleira do cão, seu segundo livro, de 1965, o primeiro conto, A força humana, exibe o momento exato em que o sujeito, ao se entregar à força do mundo, é invadido pelas sensações vitais, pela agonia da existência, pela dor de se perceber nesse mundo. 

É como se trocasse sopapos com a realidade das coisas, numa tomada de consciência de que viver era mais do que a sensação física da existência, era uma angústia também. Essa angústia varria o cotidiano e tomava as pessoas de sobressalto. Ele estava sendo tomado por ela agora. Ele estava se descobrindo vivo, humano. 

Ali, Fonseca demonstra um poder de síntese impressionante. Os contos trazem para o leitor de 2020 informação de um passado semilongínquo, da segunda metade do século XX, quando as mulheres ainda lutavam por direitos básicos. Mas também encerra um efeito estético admirável.

A narrativa nos fornece uma sensação de desconforto com o mundo, uma inquietação sensível, uma espécie de choque do eu com a realidade vivida, um conflito que é mais existencial do que social, embora aponte as relações sociais como parte fundadora do drama.

O conto O gravador demonstra com destreza a origem desse conflito. Expõe a relação do homem com a tecnologia, com a violência, com o amor, com a virtualidade. 

Nesse conto, uma mulher muda completamente sua postura diante da vida ao travar relação pelo telefone com um sujeito que ela não conhece. É como se ela transferisse sua imaginação para uma relação paralela, que tampouco deixa de ser imaginativa. 

No conto O grande e o pequeno, uma atmosfera comum é exposta em primeiro plano para dali, do subterrâneo das emoções, saírem os sentimentos, as sensações, a pulsação da vida em suas manifestações mais comezinhas, mas tão fortes, tão doloridas, tão presentes.

Nesta obra-prima de Fonseca, A coleira do cão, tudo aparece com clareza na mesma proporção que vem em poucas palavras. Tudo, o ambiente de sol, a praia e a noite cariocas, os bairros de classe média da década de 1960, o conflito familiar, as relações amorosas, o sexo, a violência, o dinheiro, tudo.

Os contos trazem narrativas marcadas pela angústia existencial, com personagens apalpando a vida para ver o que é, sem saber direito como viver, enganchados em alguma coisa, incomodados. 

Mas o último conto, que traz o título do livro inteiro, A coleira do cão, é diferente dos demais. A angústia existencial está dispersa, em meio à tensão entre polícia e bandido. Tudo fica muito físico.

O conto trata dos assassinatos no morro e da investigação policial. Talvez aí, Fonseca comece a se tornar mais autor de literatura policial de fato. A coleira do cão mostra a rotina de uma investigação, mostra como são os ladrões e a corrupção da polícia e dos repórteres que cobrem essa área. 

O morro aparece em A coleira do cão. A cor do morro é preta. Mas o morro se desvela na contramão do delegado que gosta de poesia e tem aversão a pobreza e tortura. 

Barbárie e humanidade

O Rio de Janeiro que serve “de moldura ao eclético elenco de desajustados urbanos” nos primórdios da literatura de Rubem Fonseca, como diz Sérgio Augusto em 2009, é “um Rio de Janeiro violento, sensualista, socialmente injusto, mas ainda sem favelas dominadas pelo tráfico de drogas — só por bicheiros que no máximo se protegiam com uma pistola 45mm.”

Quando A coleira do cão foi lançado, Boris Schnaiderman ficou extasiado com a verve de “barbárie e humanidade” dos contos. Hoje, ao lermos, isso ainda nos inquieta de certa maneira, mas esse sentimento em especial foi superado pela realidade brutal dos noticiários e das narrativas policiais atuais, tanto no cinema quanto na literatura, inclusive a literatura posterior do próprio Rubem Fonseca.

Mas, nesta coletânea, o conto A força humana ainda continua intacto em sua capacidade de sugar o estranhamento da vida a partir da invisibilidade. Continua capaz de nos envolver sutilmente com esse estranhamento, como se nos envenenasse. 

Na ocasião, Wilson Martins, escrevendo para O Estado de S. Paulo, vaticinou, segundo cita Sérgio Augusto:  “(A força humana) não é apenas um dos melhores contos brasileiros até hoje escritos; é, também, um dos melhores contos da literatura universal.” E até hoje esta observação de Martins ainda vale. 

Em 2002, o professor e crítico literário Italo Moriconi selecionou algumas narrativas de Fonseca para a coletânea Os 100 melhores contos brasileiros. O primeiro deles foi A força humana. Isso demonstra a importância deste conto e sua força na história da contística brasileira. 

Chutando a porta

Os primeiros livros de Fonseca não esgotam toda a criatividade do autor, mas expressam o que há de mais inovador em sua linguagem e no seu conteúdo. Depois disso, vieram os romances e mais contos. 

Depois disso, veio muita sofisticação narrativa, mas vieram também as repetições. Muito das tramas de seus romances é uma releitura ou recuperação de ideias e personagens já existentes na série de contos desses livros primeiros.

Após lançar três coletâneas de contos (Os prisioneirosA coleira do cão e Lúcia McCartney), Fonseca publicou seu primeiro romance, O caso Morel, em 1973. Em 1975, veio a público seu quinto livro, Feliz Ano Novo, o quarto de contos, que chegou chutando a porta da cozinha literária brasileira. 

Feliz Ano Novo tem um tom de janeiro, no sentido de apresentar duas faces, olhando para o tempo que passou, por meio do estilo, e apontando para o que seria Fonseca no futuro, suas tramas, seus personagens, sempre ecoando de certo modo – com sofisticação e alguma novidade – o que já fizera.

Como já era marca do autor, os personagens de Feliz Ano Novo aparecem num ambiente aberto de possibilidades. Na maioria dos contos, estão “sem saber para onde ir”. É o que ocorre, por exemplo, em Abril, no Rio, em 1970.

Neste conto, um rapaz de 18 anos, contínuo numa empresa, tenta a carreira de jogador de futebol nos finais de semana. Ele espera alcançar o sucesso, sonha jogar um dia no time do Madureira, e assim alcançar a seleção brasileira. Mas, por enquanto, ele está mesmo é num time de várzea. Joga e perde. Sente-se um perdedor.

O conto Feliz ano novo, que estampa o título do livro, já não impressiona; a violência expressa nele está todos os dias nos jornais, na televisão, na internet. Mas na época de lançamento foi a maior sensação. 

Em compensação, Passeio noturno (Parte I e Parte II) se mantém intacto em sua proposta narrativa. Nele, um homem de classe média desconectado da vida, ligado às máquinas e ao mundo dos negócios, combate seu tédio em escapadelas noturnas para, incógnito, atropelar alguém com seu Jaguar preto. 

O tema, psicopata que age na calada da noite, não é o mais interessante, no entanto. A técnica, a economia dos gestos, a combinação de movimentos, como dinâmicos frames de cinema, é que mantêm a tensão e a beleza dessa narrativa. 

Está lá um homem encalacrado na cidade, absolutamente violento e frio, narrador de suas experiências, de ficha limpa e bem-sucedido na sociedade, com mulher e um casal de filhos já adultos que não trabalham, um predador urbano que age com classe e anonimato na imensidão noturna da cidade grande. 

A violência aparece de modo brutal nas duas partes do conto, brutal por causa das mortes e porque a cidade não se importa. A cidade não está nem aí. A tese do conto é a de que o cérebro pode ser uma máquina assassina, capaz de ficar à espreita da oportunidade criminosa.

A mesma tese aparece em Dia dos namorados, conto interessante na problematização dos personagens e no modo de narrar, bicameral. Um banqueiro está dirigindo pela Avenida Atlântica e vê uma moça linda andando pela calçada.

O banqueiro oferece carona. A moça aceita, diz que tem 16 anos. Ele a leva para uma suíte presidencial de um hotel. Lá, o banqueiro descobre que ela é ele, e tenta se livrar do problema, mas o garoto saca uma lâmina e começa a se cortar dizendo “eu sempre quis morrer destruindo um poderoso, como no filme A viúva negra!” 

E aí, a jovem travesti põe a lâmina na própria carótida, ameaçando se matar com um corte na garganta. O banqueiro liga para Mandrake, seu advogado, para resolver o caso.

É Mandrake que narra a história – costurando os movimentos dele e do banqueiro – em dupla perspectiva, mostrando o que ocorria com ele, Mandrake, no momento do encontro do banqueiro com a jovem travesti. O desfecho pouco importa. A vertigem da narrativa é o que mais interessa neste conto.

O conto O pedido também está intacto em sua proposta estética. Não é uma narrativa inovadora, mas o sentimento pulsante em seu interior permanece atual. É a história de uma amizade desfeita por razões emocionais completamente idiotas entre dois imigrantes portugueses que vieram juntos de Portugal ainda criança, e sobre a miséria material de um que reflete a miséria afetiva do outro.

Já Agruras de um jovem escritor é a gênese dos personagens masculinos que matam mulheres nos contos e romances de Fonseca, como em Búfalo e Spalanzanni e Diário de um fescenino.

Outra história que também tem citações genéticas do romance Diário de um fescenino é Nau Catrineta, um incrível conto de canibalismo. “As minhas tias cuidaram de mim desde que nasci. Minha mãe morreu de parto, e meu pai, primo-irmão de minha mãe, suicidou-se um mês depois”, diz José, o narrador de Nau Catrineta.

Em Diário de um fescenino, Rufus, o narrador, diz que sua mãe morreu ao lhe dar à luz e que seu pai morreu de enfarte, quando Rufus ainda era bebê. Uma professora aposentada, sua vizinha, o levou para morar com ela. 

A vizinha “tinha três irmãs, e todas, além de velhas, eram muito doentes, creio que tinham uma forma grave de diabetes. Cuidavam de mim com desvelo, era como se eu tivesse quatro mães”, lembra Rufus.

Como o narrador de Diário de um fescenino, José, de Nau Catrineta, mata a amante. A diferença é que este confessa o que fez, mata por motivos antropofágicos, enquanto Rufus não confessa nada abertamente. 

No conto Intestino grosso, há uma passagem que também se repete em Diário de um fescenino:
“Quantos livros você tem aqui nesta sala?”
“Cerca de cinco mil.”
“Você já leu todos?”
“Quase.”
“Você lê diariamente? Quantos? Qual a velocidade?”
“Leio no mínimo um livro por dia. Minha velocidade, hoje, é de cem páginas por hora. Já li mais rápido.”

Em Diário de um fescenino, Rufus diz: “Respondi que não gostava de estudar, mas de ler e de escrever, e ela me perguntou o que eu havia lido, e eu disse que ia ter que ficar falando o dia inteiro, pois lia um livro por dia desde que tinha dez anos.”

Na literatura de Rubem Fonseca, tudo se permeia. É como um carnaval, dialogando em metáforas com comida, tiros, livros, filmes, cores, questões sociais de raça e de classe, força física e nuanças intelectuais, além do amor e a violência atravessando filtros morais, chegando à permissividade do sexo e das trocas de sensações.

Vários de seus romances se tornaram filmes e seriados, como A grande arteAgostoMandrakeBufo & Spallanzani, além de contos. Seu último livro publicado é a coletânea de contos Carne crua, de 2018. 

A característica marcante de sua técnica narrativa é o que os teóricos chamam de “showing” (mostrar), que difere da técnica “telling” (dizer) por essa capacidade de conduzir o leitor pelas imagens vivas de suas palavras. E vivas elas permanecerão por muito tempo, vivas e pulsantes na memória do leitor.

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Al Alvarez, o suicida longevo 8 Mar 2020 4:48 AM (5 years ago)

Al Alvarez (1929-2019): “A morte é simplesmente um fim, um beco sem saída, nem mais, nem menos”


Al Alvarez foi um poeta, romancista, jornalista e crítico literário inglês que dizia ser londrino em todos os cantos da alma, mas não se sentia inglês de fato. É autor de vários livros, entre eles, NoiteO Deus Selvagem – um estudo do suicídio e A voz do escritor, publicados no Brasil.

Era judeu, descendente de uma família que se viu obrigada durante séculos a escamotear sua origem numa Inglaterra antissemita, que aceitava, por exemplo, que judeus fossem físicos ou filósofos, como Michael Kosterlitz (1943-) e Isaiah Berlin (1909-1997), mas não um crítico literário, um representante da nação em sua cozinha intelectual, segundo John Sutherland, no The Guardian.

Al Alvarez não tem o reconhecimento de Raymond Williams (1921-1988), Terry Eagleton (1943-), James Wood (1965-), enfim. Sua obra não possui a consistência desses caras citados, mas ele era um escritor brilhante. 

Um de seus livros mais conhecidos é a ensaística O Deus Selvagem, tendo como objeto principal a morte de Sylvia Plath (1932-1963) na análise das possíveis razões pelas quais as pessoas se matam, fazendo observações sobre os escritores e artistas suicidas.

Nesse livro, ele cita muitos casos curiosos e faz observações interessantes. Inicia sua narrativa abrindo o primeiro parágrafo do prefácio com uma cena magistral e sombria:

“Quando estava na escola, eu tinha um professor de física muito desorganizado e de temperamento amável que vivia falando, em tom de brincadeira, sobre suicídio. Era um homem pequeno com uma enorme cara vermelha, uma enorme cabeça coberta de grossos cachos grisalhos e um sorriso permanentemente preocupado. Diziam que ele tinha se formado com distinção em Cambridge, ao contrário da maior parte de seus colegas. Um dia, ao final de uma aula, ele comentou em tom ligeiro que uma pessoa que estivesse planejando cortar a garganta deveria sempre ter o cuidado de, antes, enfiar a cabeça dentro da uma sacola, caso contrário ela faria uma sujeira terrível. Todo mundo riu. Logo depois, o sinal da uma da tarde tocou e os meninos todos saíram porta afora para almoçar. O professor de física voltou direto para casa em sua bicicleta, enfiou a cabeça numa sacola e cortou a garganta. Não fez muita sujeira. Eu fiquei profundamente impressionado.”

Depois disso, Alvarez desenvolve a primeira parte do livro sobre Sylvia Plath, a segunda parte sobre o histórico do suicídio, a terceira parte sobre a dificuldade de as pessoas entenderem o suicida, bem como as falácias sobre o suicídio, as teorias, os sentimentos, e por fim, a quarta parte traçando uma vasta linha de comentários sobre suicídio e literatura.

Ao longo do livro, além das profundas considerações na tentativa de compreender o extremado gesto, ele faz uma série de observações interessantes. Diz, por exemplo: “Acredita-se que Zenão, o fundador do estoicismo, teria se enforcado por pura distração quando deu um tropeção e torceu o dedo.”

“A depressão suicida é uma espécie de inverno espiritual, gelado, estéril, imóvel.”

“O suicídio, como o sexo, é uma característica humana que nem mesmo a mais perfeita sociedade pode eliminar.”

“Os psicanalistas já sugeriram que uma pessoa pode se destruir não porque queira morrer, mas porque não consegue suportar um certo aspecto de si mesma.” 

“Atingindo um certo grau de desespero, uma pessoa pode se matar apenas para provar que está falando sério.”

No final, confessa: “Depois de tudo isso, tenho de admitir que sou um suicida malsucedido”. Em 1961, aos 32 anos, tomou 45 comprimidos para dormir, trancado no banheiro, e acordou três dias depois num hospital, vendo sua mulher chorar. 

Ao falhar com seu método, aprendeu a lição. Não tentou se matar de novo. Mas certamente conviveu ao longo de décadas com o sentimento de suicida, como um soldado enfrenta o inimigo na névoa da guerra, sem vê-lo. 

“Parece tão ridículo agora ter aprendido uma coisa tão óbvia de forma tão árdua, ter tido que percorrer quase o caminho inteiro até a morte só para crescer. Um lado meu ainda se sente ludibriado e lesado, e também envergonhado da minha própria estupidez. No entanto, no final das contas, até o esquecimento foi uma espécie de experiência. Por certo, nada nunca mais foi o mesmo desde que descobri por mim mesmo, no meu próprio corpo e nos meus próprios nervos, que a morte é simplesmente um fim, um beco sem saída, nem mais, nem menos.”


Ele escreveu O Deus selvagem para tentar compreender por que essas coisas acontecem, por que as pessoas se matam. Fez esse estudo em 1971, dez anos depois de sua própria tentativa de suicídio. Morreu em setembro do ano passado, aos 90 anos, vítima de uma pneumonia, em Hampstead, Norte de Londres.

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Um homem que vivia ativamente: There was a man a man indeed 4 Mar 2020 9:37 AM (5 years ago)

                                                                                                Foto: Gilberto G. Pereira


Dentro do livro O Deus Selvagem, de Al Alvarez, há uma epígrafe com o poema infantil inglês Um homem que vivia ativamente, na tradução de Sonia Moreira. Achei o poema curioso, bem sombriamente pitoresco, com uma mensagem sobre algo inexorável que ocorrerá a todos nós, a morte.

Por outro lado, e com outras palavras, ele lembra um pouco nossa parlenda “Hoje é domingo, pede cachimbo”, que também nos joga luz sobre a finitude das coisas e dos seres.

Um homem que vivia ativamente

“Um dia um homem que vivia ativamente
Cobriu o seu jardim de muita semente.
Quando a semente começou a dar rama
Era como um jardim cheio de grama.
Quando a grama começou a esparramar
Era como um barco lá no alto-mar.
Quando o barco começou a içar vela
Era como uma ave a fugir da panela.
Quando a ave começou a voar pro alto
Era como uma águia no céu cobalto.
Quando o céu começou a lançar trovão
Era como um leão atrás do portão.
Quando o portão começou a ser desfeito
Era como uma estaca a furar meu peito.
Quando o meu peito começou a tremer de aflição
Era como um punhal a rasgar meu coração.
Quando o meu coração começou a sangrar em jato
Era a morte e a morte e a morte de fato.”
(Tradução: Sonia Moreira) 


There was a man a man indeed
(Poema popular infantil inglês)

“There was a man, a man indeed
Who sowed his garden full of seed.
When the seed began to grow,
`Twas like a garden full of snow.
When the snow began to fall,
Like birds it was upon the wall
When the birds began to fly,
`Twas like a shipwreck in the sky
When the sky began to crack,
`Twas like a stick upon my back 
When my back began to smart,
`Twas like a penknife in my heart
When my heart began to bleed,
Then I was dead and dead indeed.”

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Café da manhã com os russos - Café 3 - Nikolai Gógol 29 Feb 2020 2:09 AM (5 years ago)


Todo mundo sabe que o grande conto de Nikolai Gógol (1809-1852) é O Capote, cuja leitura faz muito brasileiro gaguejar na hora de repetir, aliás, toda hora, o nome do protagonista, Akaki Akakiévitch. 

Suas novelas e romances, como A briga dos dois Ivans e Almas mortas, também são clássicos da literatura russa, mas na sua obra há um conto chamado A carruagem, publicado em 1836 (quando Gógol tinha 27 anos), que, segundo os críticos, caiu no gosto de muitos autores que se tornariam clássicos mais tarde, de igual modo. É sobre ele este café.

A história se passa numa cidadezinha sem graça e feia, em algum lugar no Sul da Rússia. Antes, a cidade era monótona. Ninguém nas ruas, só bichos. Mas tudo muda quando se aquartela um regimento de cavalaria, mudando a rotina e o ânimo do lugar. Agora, carruagens e transeuntes. Nas cercas das casas, bonés de soldados dependurados, floreando a idílica paisagem.

Quando o general transferiu seu QG para lá, os proprietários de terras começaram a frequentar a cidade. A carruagem é o tipo de conto que assalta o leitor com um “vai vendo”. “Como acontece” é o grande lance, porque no fundo “o que acontece” na superfície é pífio.

Num magnífico dia de verão, a cidade está no auge de sua agitação, e o general decide oferecer um jantar. Tudo se volta para esse evento. 

Tchertokútski, o homem mais rico do lugar, vai ao jantar, bebe, joga cartas, conversa com o general e o convida para um almoço no dia seguinte. O general aceita ir com seus oficiais, e combina-se o encontro.

Mas, na noite do jantar, Tchertokútski bebe demais, e só chega em casa às 4 da manhã. Dorme até meio-dia. É acordado pela mulher dizendo que o general e seus oficiais estão chegando. Sem saber o que fazer, ele se esconde na estrebaria, e lá é descoberto. É uma peça cômica, muito bem engendrada. 

O que fica como memória do conto, como elemento nutritivo são a polifonia de figuras e vozes no espaço público da cidade, a convergência de movimentos pelas ruas e nas casas, de gentes e bichos, e objetos, tudo meio que dançando na narrativa, como carruagens e carroças, gente fumando, bebendo, almoçando, conversando. 

O mesmo acontece no interior dos personagens. Seus pensamentos, seus desejos e motivações aparecem. A cidade, antes praticamente morta, transforma-se num palco de vida. 

As pessoas em cujas vidas nada acontecia se animam, mudam suas perspectivas. É o que ocorre com Tchertokútski, que vê tudo se iluminar dentro de si, como fogos de artifícios que riscam a noite. Num átimo, a escuridão monótona da alma deixa a festa da existência acontecer, mesmo que a banalidade do cotidiano e o despreparo para os grandes feitos atropelem, depois, suas intenções.

No Brasil, A carruagem (tradução de Arlete Cavaliere) pode ser lido no livro Nova ontologia do conto russo (Ed. 34).

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Café da manhã com os russos - Café 2 - Aleksandr Púchkin 14 Feb 2020 1:42 AM (5 years ago)


Tblisi, capital da Geórgia: já era famosa pelos banhos termais na época de Pushkin, que ressalta essa qualidade em seu conto

Aleksandr Púchkin (1799-1837) tem uma semelhança com Machado de Assis, dizem os críticos. A primeira leva de sua obra seguiu as linhas gerais da narrativa tradicional russa, mas, na segunda, mudou completamente o próprio estilo e o de seus sucessores.

Mas não é só isso que Púchkin tem de semelhante com Machado de Assis. O Bruxo do Cosme Velho era mulato. Púchkin também. Ele era bisneto de Abraão Aníbal (1670-1762), nascido na Eritreia, escravo negro de Pedro, o Grande. Veja que esse negócio de imperador chamado Pedro nos persegue a nós negros. 

Há um conto famoso de Púchkin, intitulado O negro de Pedro, o Grande, com muitas edições no Brasil (na verdade, é um romance inacabado). Mas o conto em questão neste café da manhã é Viagem a Arzrum, publicado pela Editora 34 (tradução de Cecília Rosas).

A tradutora bancou a grafia Arzrum, em vez de Erzrum, provavelmente porque assim está no alfabeto cirílico russo. O próprio narrador do conto chama a atenção para a grafia adotada: “Arzrum (incorretamente grafada de Arzerum, Erzrum, Erzron) foi fundada por volta de 415, no tempo de Teodósio II, e chamada de Teodosópolis.”

Como a observação está entre parênteses, vá saber se não é coisa da própria tradutora. Dúvida eterna. Só o que se sabe é que nos mapas modernos a grafia é Erzurum – veja Google Maps). 

Publicado em 1836, o conto já mostra na introdução uma característica da prosa moderna, que é mistura de nomes e dados factuais do autor com a trama fictícia, enfatizando elementos de ironia (não ainda uma autoficção, mas seu germe, tendo o narrador, inclusive, o nome de Pouchkine).

Há um momento em que o narrador cita um poema de Aleksandr PúchkinO Prisioneio do Cáucaso e diz “a obra é toda fraca, juvenil, incompleta; mas há muito ali fielmente intuído e expressado." E há um conde Pushkin que viaja no mesmo grupo e um soldado chamado Mikhail Puschin. 

O conto é um relato de viagem que o poeta russo Pouchkine fez à Turquia, para cobrir a guerra russa-turca, em Arzrum. Nessa jornada, ele atravessa o sudeste do país, e algumas fronteiras, até chegar ao seu destino e se encontrar com o comandante das tropas russas, o conde Paskévitch. 

Ele sai, então de Moscou e passa por Kaluga, Beliov, Oriol (cidade de Ivan Turguêniev), Kursk, Karkhov, Voronej, Stavropo, atravessa o rio Podkumok (com os recursos do Google Street, você olha o rio e vê que Púchkin imortalizou um rio da envergadura do Tamanduateí, ou João Leite, para quem é de Goiânia).

Alcança Vladikavkaz, atravessa o rio Terek, chega a Lars, passa pela cadeia de montanhas Darial, já na Geórgia, observa o monte Kazbek, por onde ele diz ter passado com indiferença porque queria chegar logo a Tbilisi, ou seja, atravessa toda a região do Cáucaso, espremida entre o Mar Negro e o Mar Cáspio.

Atravessou o rio Kura, que banha Tbilisi, a capital de Geórgia (“Tbilis-kalak, em georgiano significa cidade quente”, diz o narrador, que chama a cidade de Tiflis, tal como se diz em russo), e passou por Guiumri (Armênia), Kars (Turquia), avistando, dos vastos campos abertos, o monte Ararate, a mais de 100 quilômetros de distância.

Esse passeio saindo do Sudoeste da Rússia rumo à Ásia Menor, às terras da Turquia, forma uma cartografia interessante. É uma narrativa aos moldes das crônicas de viagem, com riqueza de detalhes. As impressões de lugares e costumes que ele fixa no texto ressaltam seu estilo de prosador e sua fantástica capacidade de pintar a natureza.

É um texto que deveria ser lido por todo jornalista interessado em escrever reportagens de fôlego. A viagem não é toda fictícia, porque Pushkin de fato fez um trajeto semelhante em 1829. 

As gentes descritas são reais, as magníficas paisagens com seus rios, montanhas, desfiladeiros e céu azul, neve e chuva são reais, a comida, os banhos termais em Tbilisi são reais.

Acompanhe a leitura que você faz usando o Google como ferramenta de apoio. Você verá uma magnitude que os leitores do século 19 não puderam ver, só puderam sentir o impacto das palavras de Púchkin, que não é pouco. 

Os personagens históricos não são inventados, como Alexandr Griboiedov, poeta e diplomata, que sofreu uma morte horrível em Teerã por fanáticos persas, cuja citação no segundo capítulo do conto é de uma beleza ímpar, pela comoção do narrador e pela descrição da personalidade do poeta morto.

“Suas capacidades como homem de estado ficavam sem uso; seu talento de poeta não era reconhecido; até sua coragem fria e brilhante esteve algum tempo sob suspeita. Alguns amigos sabiam de seu valor e viam surgir um sorriso incrédulo, esse sorriso tolo e insuportável, quando por acaso falavam sobre ele como uma pessoa extraordinária.”

O narrador passa de Kars e chega ao acampamento das tropas russas, na guerra contra os turcos, num avanço imperialista de Moscou. Essa narrativa não deixa de ser exaltação aos valores da Rússia, às suas forças armadas, sua inteligência, sua capacidade de territorialização. É a exaltação de um pensamento imperialista. 

Mas, apesar desse realismo político, trata-se de uma bela peça literária pelo tratamento dado, pelos procedimentos estéticos entre o realismo e o romantismo. O que fica como memória do conto, como elemento nutritivo, é a exuberância dessa paisagem exterior da Rússia, complexa em sua formação cultural e geográfica.

A coloração social mostra uma diversidade de povos impressionante (tártaros, calmucos, nogais, circassianos, ossetas, cossacos, e mais adiante armênios, persas), por meio dos quais o narrador desfila, em sua jornada rumo a Erzurum. 

Os conflitos naturais e sua beleza, no entanto, não acarretam transformações marcantes na alma do narrador, nem em subjetividade alguma. Neste sentido, pelo menos neste conto, presente no livro Nova antologia do conto russo (Ed. 34), talvez o último que ele tenha escrito, Púchkin está distante de Machado de Assis (além da distância geográfica e temporal, pois este só viria bem depois).

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Café da manhã com os russos - Café 1 - Nikolai Karamzin 12 Feb 2020 3:42 AM (5 years ago)


Pobre Liza é um conto russo de Nikolai Karamzin (1766-1826) publicado em 1792. A história se passa nos arredores de Moscou, na zona rural, perto das torres góticas e sombrias do mosteiro de Simonov, instalada sobre uma colina de cujo cume dava pra ver toda Moscou. Isso no século 18, porque hoje a capital russa tem quase 12 milhões de habitantes e já tomou tudo aquilo. Mas o mosteiro, erguido em 1370 (pesquisei), continua de pé. 

Próximo do mosteiro, passa o Rio Moscou. Próximo do rio, num pequeno bosque, havia uma cabana onde 30 anos antes (1762) morava uma moça chamada Liza, “a bela e doce Liza”, com sua velha mãe, que ao ficar viúva (quando Liza tinha 15 anos) empobreceu. 

Por causa dessa orfandade e uma mãe sem forças, Liza começou a trabalhar. Ia a Moscou vender coisas do campo. Sua mãe era grata por isso, e dizia que Liza era “graça divina, arrimo de família, deleite de sua velhice, e pedia a Deus que a recompensasse por tudo o que fazia pela mãe."

Um dia, dois anos depois da morte do pai, vendendo lírios em Moscou, Liza conheceu um sujeito chamado Erast, muito simpático e generoso com mãe e filha. Os dois se apaixonaram. Como ele era nobre, e ela, camponesa, o amor permaneceu clandestino. Até que surgiu um boato de que os camponeses haviam arranjado um noivo pra Liza. Eis a a encruzilhada do destino.

Por causa disso, Liza decidiu se entregar ao doce Erast. Fizeram muito sexo por muito tempo, até que Erast disse que tinha de partir para a guerra porque morrer pela pátria era nobre. Amava-a, mas tinha de cumprir seu dever de cidadão e coisa e tal. Foi para a guerra. Liza não se casou, não tinha noivo nenhum, e sofreu pelo amor de Erast. 

Dois meses depois, Liza indo a Moscou vender suas coisas, ela se depara com Erast, vivo e são, sem o menor sinal de que estivera em algum front. Ele diz a ela pra esquecê-lo porque agora estava casado.

Não. Ele foi pra guerra, sim, hypocrite lecteur. Mas, lá, não lutou contra ninguém, nem contra seu vício em jogo. Jogou apostado até perder toda a fortuna, e teve de se casar com uma viúva rica. Alas me, oh my God! 

Mas não teve tempo de explicar nada à jovem amante. Liza se jogou nas águas do Rio Moscou e morreu afogada. Agora, me diga, com um título desses, numa história contada em 1792, ou era isso ou a solução romântica dos franceses. Mas os russos são os russos. Liza fora enterrada no cemitério do mosteiro, que o narrador contempla ao contar essa história.

Esteticamente, o conto narra uma história da miséria humana, contrapondo a beleza da natureza e sua paisagem exterior irretocável ao roto tecido da pobreza envolvendo a paisagem interior de Liza. 

O que fica como memória do conto, como elemento nutritivo é a imagem do infortúnio de Liza, que parece ter sido o mote para um personagem de Dostoievski em Crime e castigo, de 1866. Em Gente pobre, de 1846, Dostoievski já havia colocado um dos personagens das trocas de cartas para citar esse conto.

Em português, o conto está presente no livro homônimo de Nikolai Karamzin (tradução de Natalia Marcelli de Carvalho e Fatima Bianchi) e na coletânea Nova antologia do conto russo (vários tradutores; sendo Pobre Liza a mesma tradução da publicação citada acima; Org. de Bruno Barretto Gomide), ambos publicados pela Editora 34.

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Grimm, uma fabulosa fauna de presas e predadores: metáfora do que somos 17 Jan 2020 8:10 AM (5 years ago)

“Eu não acredito em monstros, a não ser que sejam pessoas.” Sean Renard, capitão da polícia de Portland, chefe de Nick Burckhardt

“Os hospitais psiquiátricos estão cheios de pessoas tentando explicar as coisas que viram e não conseguem explicar.” Monroe, relojoeiro, blutbad e amigo de Nick Burckhardt

“Tem coisas que a gente não entende nesse mundo, o que não quer dizer que não existem.” Hank, parceiro de Nick Burckhardt na polícia de Portland, depois de se iniciar no mundo Wesen

 “A realidade está aberta a interpretações.” Héctor, um chefe indígena

 
Grimm, série produzida pela NBC entre 2011 e 2017: em cartaz no SyFy, da Globosat (TV paga), de segunda à sexta, às 12:35 e às 22 horas

A série Grimm se despediu do público periódico em 2017, na sexta temporada. Mas no dia 6 deste mês fez outra despedida, saiu da grade da Netflix, e vai deixar muita gente com saudade. (O texto a seguir contém spoilers e um monte de nomes e cenas).

Grimm é uma fabulosa fauna de presas e predadores metamorfoseados de gente, o que no fundo, sabemos, é uma metáfora do que somos. Pedófilos, como o lobo mau do primeiro episódio, estupradores, assassinos, exploradores inescrupulosos e seres indefesos, eternas vítimas, desfilam na trama dessa série espetacular.

O interessante disso é que, à luz de Darwin, nós humanos somos os seres mais complexos da evolução, estamos no topo, e tudo que está para trás é um tipo de rastro que deixamos. Daí fazer muito sentido a metáfora da vida pelo viés da nossa monstruosidade escondida.

O protagonista é Nick Burckhardt (David Giuntoli), investigador da polícia e Grimm, cujos ancestrais caçavam Wesen, seres de aparência humana, mas de essência animal, de diversas espécies: leão, águia, lobo, cobra, vermes, minhocas etc. 

Só os Grimms veem essa essência, quando algum Wesen voga (aparece como é), em estado de medo ou sob forte emoção (vogam também pra todo mundo ver, mas é raro). “Um Grimm é uma pessoa que consegue ver através das trevas, alguém que vê coisas que as outras pessoas não entendem”, diz Monroe, amigo de Nick.

E se forem reais?

Produzida pela TV americana NBC, de 2011 a 2017, Grimm foi estruturada dentro dos gêneros de fantasia, policial e ação. No Brasil, a série teve o título de Grimm: contos de terror, exibida na Record, no Universal Channel e na Netflix. Saiu da grade desses canais, mas está em cartaz no SyFy, da Globosat (TV paga), de segunda à sexta, às 12:35 e às 22 horas.

O nome, obviamente, vem dos irmãos Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859), dois linguistas, poetas e escritores alemães que coletaram e organizaram vários contos de fadas na Prússia (atual Alemanha) e se imortalizaram por isso. Eles são citados na série como os primeiros ancestrais de Nick e dos raros Grimms que ainda andam por aí caçando “monstros”.

Essa origem justifica o fato de os nomes que envolvem os animais e teorias no mundo da série serem quase todos em alemão. Wesen, por exemplo, quer dizer ‘criatura’, ‘essência’, ‘natureza’, ‘caráter’, segundo o Pequeno Dicionário Michaelis Alemão-Português/Português-Alemão.

A ambientação é na cidade de Portland, no Estado de Oregon, EUA. O tempo é a contemporaneidade, começando em 2011, que é o ano de estreia da produção criada por Stephen Carpenter, Jim Kouf e David Greenwalt.

Embora os Grimm sejam impiedosos caçadores de Wesen, Nick é diferente. Ele segue a lei dos humanos (kehrseite). Prefere prender quem comete crimes, “tem distintivo e consciência”, não sente vontade de matar Wesen a torto e a direito. Quer dizer, mata muitos, mas apenas quando estes são assassinos brutais e não há o que fazer para pará-los.

A premissa que justifica a trama é colocada na boca de um dos personagens no Episódio 21 da primeira temporada: “E se todas as histórias que ouvimos não forem só histórias? E se forem reais?” Pois é. Eis a questão.

O lobo bom e a bela raposa

O personagem mais interessante da série é Monroe. Ele aparece nas primeiras cenas do primeiro episódio, e se torna um grande parceiro não oficial de Nick Burckhardt. Monroe é relojoeiro, além de Wesen. É um blutbad (piscina de sangue, em alemão), essência do lobo, mas é vegetariano, justamente porque abandonou a vida louca dos carnívoros.

Ele é engraçado, companheiro, tem um senso de humor refinado, é culto e adora música. Sobre talento genuíno, uma vez ele disse: “Talento é um dos mistérios da vida, ninguém sabe de onde vem, mas é o que nos eleva da tristeza do comum.” 

 

Toca violoncelo. Seu repertório é sofisticado. Aprecia Mozart, Bach, Brahms, Rimsky-Korsakov. Lê livros, fala alemão, e anda num fusca bege com o para-choque traseiro esquerdo cinza.


Uma vez, conversando com Rosalee, sua mulher, sobre a velhice e a solidão na morte, Monroe disse que os dois envelheceriam juntos e morreriam juntos, e então citou o trecho de um poema de W. B. Yeats: “But one man loved the pilgrim soul in you,/ and loved the sorrows of your changing face.”

Os versos são do poema “When you are old” (“Quando você estiver velha”, em tradução livre), do livro Early Poems II: The Rose, que pode ser traduzido assim (sem métrica): “Mas um homem amou a alma peregrina em você,/ e amou os sofrimentos de seu rosto mudado.” É um romântico.

Rosalee é uma fuchsbau (raposa) incrível, que sabe tudo de ervas. Mudou-se para Portland para resolver questões da morte do irmão e conheceu Monroe. Ela então decidiu continuar lá, vendendo produtos naturais para fazer todo tipo de poção mágica e unguentos.

Os dois personagens são muito bem construídos, e contam com boas atuações. Silas Weir Mitchell (Monroe) e Bree Turner (Rosalee) têm uma química que deu muito certo ao longo de todas as temporadas. Eles são um dos casais mais cativantes já vistos numa obra de ficção.

Além de Nick, que vê coisas que os outros não veem, Juliette, que é veterinária e talvez fosse ter um papel diferente na série, mas acabou se desenvolvendo de um jeito menos hortodoxo, Rosalee e Monroe, os outros coadjuvantes são Hank Griffin, policial parceiro de Nick, Wu, outro parceiro de Nick, e Trubel, uma bela e jovem Grimm que entra na trama mais tarde (Ep 19, Temp 3).  

O elenco principal ainda tem Bud Wurstner, um eisbiber (castor) amigo de Nick, medroso que só ele, mas muito família, Adalind Schade – hexenbiest (bruxa) de personalidade inconsequente, que está sempre fazendo o mal e ferrando os outros e a si mesma – e Sean Renard, chefe de Nick e um zauber-biest (bruxo) que oscila entre o bem e o mal (algo que parece ser da natureza dos bruxos).

No mundo da série

O fulcro da trama são os crimes cabeludos do ponto de vista das pessoas normais, ou seja, kehrseite (se sabem sobre os wesen, são kehrseite-Schlich-Kennen; se não sabem, são kehrseite-genträger).

Em um dos episódios, Nick investiga o tráfico de órgãos feito por Geiers (urubus), incluindo vesícula biliar humana seca, que os Wesen usam para tomar com chá branco. 

“Os Geiers praticam medicina alternativa, usando partes de animais exóticos como vesícula de urso, chifres de rinocerontes, e órgãos humanos para aprimorar criaturas. Isso funciona bem. Nossos animais exóticos são vocês” diz Monroe a Hank. 

Em outro episódio, Nick salva uma seltenvogel (pássaro raro, em alemão), quase extinto, que geralmente é mantido aprisionado como concubina ou periquito, por klaustreiches (um tipo de gato). Os klaustreiches seduzem as seltenvögel, aprisiona-as e as exploram.

O roteiro opera no registro de estereótipos. O castor é encanador, e não advogado. Hexenbiests e zauber-biests (bruxas e bruxos) é que lidam com a lei. Urubus procuram a morte, leões estão no topo. 

Mas também explora o avesso dos arquétipos, mudando o significado fabular. Logo, há o porquinho que mata lobos, a Cinderela que persegue e mata as meias-irmãs. Há o lobo bom (Monroe). 

A versão da bela adormecida também está modificada. Vem como registro de ironia à contemporaneidade, com Juliette entrando em coma por causa de um feitiço de Adalind, e Renard (que além de zauber-biest é um príncipe bastardo) tendo de se purificar para dar um beijo (puro e verdadeiro) na Juliette, despertando-a, à revelia do conhecimento de Nick.

“É um processo de purificação. A pessoa que acordá-la tem de ser puro de coração. É impossível achar alguém assim hoje em dia, então fazemos isso quimicamente”, diz a mãe de Adalind, expert na alta bruxaria.

Outra coisa importante no centro da série é o trailer herdado por Nick da sua tia Marie. É pleno de armas medievais (Besta, Kanabo, Balestra, Rifle de ogros) e de livros em vários idiomas, como árabe, japonês, alemão, espanhol, italiano, latim, descrevendo as características dos Wesen e como matá-los. 

“Este lugar é tipo o Arquivo Nacional, ou uma espécie de Smithsonian de Grimmnologia. Só o valor histórico de tudo aqui é...”, diz Monroe, devorador de cultura, completamente apaixonado pela riqueza do acervo. 

O trailer tem uma biblioteca com as crônicas dos Grimm, e agora, Nick está escrevendo as suas também. “Tem cada coisa espetacular nesse trailer”, diz Monroe (Ep 20, Temp 1). "Acho que nunca vou me cansar daqui. Eu poderia passar dias aqui”, diz Wu (Ep14, Temp4), quando se inicia no mundo especial. 

Escuridão infinita

Se por um lado, um Grimm tem o poder de ver os Wesen ao vogarem, nesse momento, eles também o reconhecem, e geralmente entram em pânico ou fúria, pois ao longo de séculos os Grimm caçavam e matavam Wesen. Agora, são raros. Para muitos, não passam de uma lenda.

“Os Grimm não tinham compaixão ou consciência. Matavam homens, mulheres, crianças, animais. Eles tinham um esquadrão da morte, e vagavam pelo interior do país cortando cabeças, arrancando olhos, braços, pernas, testículos”, diz Monroe (Ep 10, Temp 2). 

Quando um Wesen voga diante de um Grimm, vê nos olhos deste “uma escuridão infinita, e, refletida nela, vê também sua verdadeira natureza Wesen”, diz Monroe. Ou seja, vê sua própria animalidade.

Onça pintada

A série explora as diversas fábulas e todos os cantos do imaginário humano, indo da psicodelia às sondagens do inconsciente. Deve ser um prato cheio para estudiosos da psicanálise que seguem a linha de Bruno Bettelheim. Lendas de todos os continentes são abordadas.

Do Brasil, há inclusive uma que inspirara João Guimarães Rosa para um conto muito famoso, “Meu tio o Iauaretê”, que consta no livro Estas estórias, de 1968. Na série, o animal aparece como yaguareté (onça pintada, no Brasil), uma lenda guarani cujo relato diz que o yaguareté é uma pessoa encantada.

Várias outras lendas da Amazônia são narradas em Grimm, mas se fôssemos exigir precisão, queríamos a presença pelo menos do Saci Pererê, Mula Sem-Cabeça e da Iara. Sua prima, a sereia, foi lembrada.

Apesar de se intitular Grimm: contos de terror, em português, e de fato haver uma estética de fantasia com violência e certo grau de macabro, geralmente as tramas não assustam. Mas são definitivamente um thriller bem contado.

Susto e perplexidade

Como espectador, a história que mais mexeu comigo, talvez entre aí algum componente do inconsciente, foi o episódio “A Chorona”, fantasma de mulher que chora e rouba crianças (Ep 9, Temp 2). A mãe afogou os três filhos por vingança porque o marido a trocara por uma mulher mais jovem. (Quase Medeia). Como consequência, ela se matou e virou esse fantasma assustador.

Assusta-me, talvez porque seja uma história de almas. Não acredito em fantasmas, mas eles não dependem de minha crença, ou da falta dela, para existirem. Nick solucionou o caso, mas não venceu o espírito transtornado, que não era exatamente um Wesen.

Se umas histórias até assustam, outras causam perplexidade, qualidade característica do terror, como o episódio 18 da 5ª temporada, sobre uma família de barbatus ossifrage (um tipo de abutre – como o real Gypaetus barbatus), que quebram ossos para comer a medula (tutano).

Os pais são dois velhinhos que moram num trailer às margens do rio. O filho espreita vítimas à noite num dos parques da cidade, sentindo um tipo de aroma da morte. Ele as atropela várias vezes, quebra bem seus ossos e então usa sua técnica de Wesen para sugar pela boca da vítima a papa de carne e osso dissolvidos no corpo, ficando só a estrutura física de couro e pele.

O filho vai até os pais que estão de bico aberto esperando a refeição. Ele regurgita tudo no bico dos progenitores. Os pais fazem chantagem moral para cobrar comida do filho. “Você é um bom menino”, diz o pai. “O que nós faríamos sem ele?”, pergunta a velha mãe. “Passaríamos fome”, responde o velho e cansado pai.

Quando está caçando, arrastando as vítimas, o filho protesta em voz alta: “Só reclamam. Egoístas! E a minha vida? Espero que morram!” Nick e Hank descobrem quem é o sugador de tutano, e o perseguem. Ele é atropelado e morre. Os pais, velhinhos, vão reconhecer o corpo do filho todo amassado no necrotério.

“Esse é o nosso Charles”, diz o pai. “Era um menino tão bom”, diz a mãe. Quando os investigadores saem, os velhinhos olham um para o outro, ainda chorando, e a mãe diz: “Ele não pode ser desperdiçado assim.” E o velhinho: “Tem razão. Vai você primeiro.” E sugam pela boca os ossos triturados do filho.

A trama virou outra

Grimm foi espetacular até o último episódio da quarta temporada. Depois disso – salvo raras exceções, como o episódio dos barbatus ossifrage e um na sexta temporada sobre uma cigarra que hiberna enterrada no chão, junto com um corpo para se alimentar por sete anos, voltando ao mundo dos vivos por 24 horas para buscar mais um corpo –,  tornou-se apenas o resíduo de uma usina criativa e original. 

O roteiro tomou outro rumo, começou a misturar lenda com mitologia e acabou desembocando na exploração de arquétipos religiosos e premissa de física quântica. 

Os produtores gostam de saturar uma boa ideia. Uma série é uma criaturinha que vamos alimentando, e quem vê vai gostando, mas que se tornará fatalmente um monstro incontrolável.

O ideal seria parar antes, no momento exato, e não matar o monstro. Seria melhor liberar a criatura e deixá-la partir para a selva enquanto temos dela os melhores sentimentos. É raro isso acontecer. 

Geralmente, os roteiristas exploram até a última hora de criatividade e não percebem que já passaram do ponto, que a premissa original já foi pro espaço e a trama virou outra.

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O Irlandês é um filme imenso 14 Jan 2020 8:06 AM (5 years ago)

De Niro não foi indicado ao Oscar (Joe Pesci e Al Pacino, sim, como coadjuvantes), mas sua atuação é digna do grande filme que é O Irlandês, e ele conduz a trama inteira 


A primeira vez que tentei ver O Irlandês, não consegui. Parei nos 30 minutos (das 3 horas e meia de filme). Achei o filme lento demais. Ainda assim, nessa primeira meia hora, fiquei impressionado com a atuação de Joe Pesci, contida, sustentando um tom dramático absoluto, sem resvalar na comédia, justo ele que sempre foi engraçado. 

Todo mundo já dizia que o filme seria indicado ao Oscar, como foi em 10 categorias. Ontem decidi ver o filme do começo ao enfim. Entre um bocejo e outro, comecei a prestar atenção nos detalhes das cenas, passei a seguir as indicações do roteiro. Terminei de ver, e fui ver de novo para apreciar o fio da narrativa.

O Irlandês é um filme imenso, e me sinto envergonhado de dizer isso só depois de estar legitimado pela crítica e pela Academia de Hollywood. Mas é uma aula de direção. Há momentos em que a cena é sustentada pelo silêncio, e a câmera capta nos gestos de Robert De Niro toda a tragédia que se anuncia, todo o drama de chegar até ali matando pessoas.

A história da máfia, com suas famílias cheias de vida e de amor, e de empreendedorismo, e de traição, e a morte como a moeda mais corrente, está encerrada nesse filme de modo magistral. Existe uma dor que atravessa a narrativa, e uma consciência de que não há esperança nenhuma que também é muito cortante.

De Niro não foi indicado ao Oscar (Joe Pesci e Al Pacino, sim, como coadjuvantes), mas sua atuação é digna do grande filme que é O Irlandês, e é ele quem conduz a trama inteira, fazendo dois papéis ao mesmo tempo. 

Faz um papel visível, que é o de um assassino profissional que serve a dois senhores, matando gente (enquanto lida com o drama doméstico de não saber como amar as filhas e a mulher, sendo um assassino).

O outro papel é quase imperceptível. É o de um velho largado num asilo falando sozinho (sutilmente sugerido), narrando a história da máfia que ele mesmo ajudou construir e que sobreviveu a ela, guardando um segredo que jamais contou para as autoridades (quem matou Jimmy Hoffa).

Martin Scorsese concorre ao Oscar de Melhor Diretor, mas concorre com Quentin Tarantino, cujo filme Era uma vez em... Hollywood pode levar o prêmio este ano.

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Por onde anda Wania Capelli 13 Jan 2020 4:57 PM (5 years ago)

Branca como uma italiana, de uma brancura que aceita o sangue vir à pele em momentos de rubor ou raiva. Plena de entusiasmo (um deus dança dentro dela), cheia de vigor para falar. O primeiro contato que tive com ela foi pela voz ao telefone, em dezembro de 2000, me comunicando a aprovação no Curso Abril de Jornalismo em Revista, em São Paulo.

A pobreza em que eu vivia em Goiânia saltava aos olhos de qualquer um. Quando passei no vestibular de Jornalismo na Universidade Federal de Goiás (UFG) para o ano de 1997, eu já sabia do novo ambiente que encontraria. 

Eu era uma espécie de Colombo do Cerrado descobrindo o Novo Mundo de gente branca e burguesa dos bancos de faculdade. Eu era agora preto e pobre entre meninos e meninas de pele clara.

No primeiro dia de aula, uma colega pediu que escrevêssemos nossos respectivos endereços num caderninho para contato. Escrevi Rua Palmito, Chácara 4, Vila Yate, e a colega riu, perguntando se eu estava brincando. Para quem morava no Setor Bueno, Marista, Setor Oeste ou adjacências, eu só podia estar de sacanagem. 

Mas deu tudo certo. Quando passei no Curso Abril, quatro anos depois, uma dessas plumas diáfanas da burguesia goianiense me disse “parabéns, este era o único curso (estágio) que me interessava fazer.” Ouvir aquilo foi como uma vitória pessoal. 

Cheguei a São Paulo trazendo na mochila a mesma expectativa e a mesma pobreza. Wania Capelli foi quem nos recebeu. Ela era subordinada de Eugênio Bucci, na Secretaria Editorial, responsável pelo Curso Abril na ocasião. Ela tinha 38 anos.

Quando cheguei, Wania já era uma lenda ali. Fora secretária direta de Victor Civita, o fundador do Grupo Abril, e quando este morreu, ela foi realocada para a Secretaria Editorial e acompanhou de perto o desabrochar de muitos jornalistas da casa.

Eu ainda estava em Goiânia quando ela me perguntou onde eu ficaria. Na Zona Leste, eu disse. O Grupo Abril fica na Zona Oeste, em Pinheiros, tocando para o Sul. Não tínhamos direito a hospedagem, só alimentação. Cada um que se virasse com lugar de dormir. 

Mas Wania arranjou um jeito de pagar um hotelzinho em Santa Cecília pra eu e um colega ficarmos, um colega tão pobre quanto eu, vindo do Rio Grande do Norte, o Francisco. O restante da turma era de classe média, um tipo de mundo muito agradável, no geral, mais pela logística do que pela fauna encontrada (salvo raras exceções, das quais me lembro muito bem).

Ficamos bem instalados naquele espaço simples, onde uma vez, conversando em inglês, ouvi um nigeriano dizer “eu negocio raw leather (couro cru)”. Mas depois soube que seu trabalho era mesmo com white dust. Traficava cocaína. 

Nesse mesmo hotel, havia uma garota – com quem meu colega e eu fizemos amizade – que dizia em toda conversa entre nós que gostava de p**a. Ela era bonita, uma catarinense de sotaque carregado e corpo photoshópico. E eu, inocente, impuro e besta, não reagia à fala dela (pensando falo ou não falo) senão com sorrisos, entre um gole e outro de cerveja.

Eu sabia que aquilo de que ela gostava tinha de vir enrolado em notas de cem, e eu não tinha sequer uma camisa nova. Mas fiquei nesse hotel, e de lá pegava o Pinheiros 308, se não me engano, até o NEA (Novo Edifício Abril), na Avenida das Nações Unidas, ao lado da Marginal Pinheiros.

Do começo ao fim dessas aventuras em SP, a presença de Wania era um galardão pra mim. Era um fluxo de afeto que me impulsionava na difícil empreitada de encarar São Paulo. Eu tinha dois irmãos que moravam lá havia décadas, mas moravam, advinha, na Zona Leste, e por isso, estar num hotelzinho em Santa Cecília era a grande jogada, me facilitava a vida, e Wania sabia disso.

Sua generosidade tinha de ser contada em livro. Wania entrou presencialmente na minha vida em janeiro de 2001. De lá para cá, de novo talento da Editora Abril, passei por todas as fases do fracasso em cada redação que trabalhei, em São Paulo, Curitiba e Goiânia. 

Escrevi para a Superinteressante, para a Época, para o Diário do Comércio, para sites e portais, trabalhei na Editora Ática, em assessorias de imprensa como W&NP e FSB, em São Paulo, nas revistas Clube Curitibano e Clube Santa Mônica (Curitiba), nos jornais Tribuna do Planalto, O Popular e Opção (Goiânia).

Em todos esses lugares mencionados, soube usar com maestria a ferramenta da autossabotagem. Fui responsável por cada um de meus desligamentos dessas empresas. Mas não desliguei Wania da chama de minhas lembranças. Ela permanecerá para sempre num lugar especial de minha memória poética.

Sempre que eu olhar para minha história pregressa, verei Wania me arranjando o hotel em Santa Cecília, querendo meu sucesso, me apoiando nas horas mais difíceis, como quando um de meus irmãos foi assassinado em São Paulo e ela foi ao enterro, no Cemitério da Vila Formosa, para me abraçar e me consolar da dor de perder um irmão. Ninguém faz isso na cidade do escárnio se não for por legítima afeição.

Sempre que eu acender minha memória, na primeira luz estará Wania, dançando comigo na festa de encerramento do Curso Abril, me abraçando, conversando comigo, convidando-me para jantar no apartamento dela, onde morava com o marido e o filho, onde degustei um delicioso foundi acompanhado de um inesquecível Beaujolais, num dia frio em Higienópolis.

Wania sempre estará em minha memória em registros afetuosos, como quando esteve presente no Chá de Bebê de minha filha, em 2007, e quando foi ao apartamento onde eu morava, em 2008, para presentear – com uma manta que ela mesma bordou – minha filhinha nascida havia poucos meses.

Junto com essa memória, carregada de lembranças de uma mulher incrível, bonita, inteligente, com grande senso de justiça, há também uma fina névoa de cinza. Quando voltei para Goiânia, o impasse dos anos e a distância afastaram-me de Wania Capelli. E me entristeço. 

Enquanto estava em São Paulo, deixei passar as oportunidades de dizer o quanto a amei por tudo isso, como quem ama a uma mãe. Agradecer não era suficiente. Seria preciso dizer “eu te amo”, e isso eu não fiz.

Não tive fartura de gestos para mostrar a ela minha gratidão. Não a abracei suficientemente, não lhe mandei flores, não telefonei pra ela o bastante pra dizer coisas simples, ou simplesmente para ouvir sua voz de sotaque da Bela Vista criticando as ordinarices do mundo, para ouvi-la, para vê-la.

Wania foi meu primeiro sorriso paulistano. Seguramente, por este sorriso ter sido na chegada, foi quem me fez acreditar que naquele imenso geral de prédios e barulho havia uma distinção feita de afeto.

Ela me protegeu, me salvou, me acolheu, me apoiou, encheu meu mundo de lembranças positivas, de exemplo de afeto desinteressado, de amor mesmo, um tipo de amor raro sempre, o amor da amizade, porque foi uma amizade dada ao primeiro encontro, e amizade dada – como diz Riobaldo, de Grande sertão: veredas –, amizade dada é amor.

Todas as fotos que tirei com Wania Capelli foram acidentalmente apagadas por minha filha, ainda pequenininha, do meu computador. As imagens das fotos foram deletadas, mas não as imagens registradas em minha memória. 

O mais importante é que elas não são estáticas. Estão em movimento, com o volume da voz, com a dinâmica dos gestos elegantes, da postura ereta, do olhar, do jeito de andar, da mão segurando o cartão para passar na catraca da Editoria Abril e ir almoçar no restaurante do NEA.

Wania merece todas as palavras benditas, todos os verbos perfumados e afetivos e alegres e cheios de vida apenas para completar a vida imensa e enérgica que sempre teve. 

Flutuei pelas águas da cidade que é dela. Sei tanto quanto ela do nível de surfe que se pode ter em meio às ondas de dificuldade e do número de caminhos que se bifurcam em tão pouco tempo na Pauliceia. São tantos que nos fazem até perder a direção, mas também nos ensinam que a vida é esse emaranhado de fios e cores em meio ao cinza que tisne o redor.

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The Witcher – entre Game of Thrones e o fracasso 2 Jan 2020 8:03 AM (5 years ago)

Yennefer de Vengerberg, Geralt de Rívia e Cirilla, a trindade heroica da série, cada um com seu conjunto de atributos conflitantes, que na segunda temporada deve mostrar mais a que veio, caso contrário, a série não decolará


Se a Netflix apostou nos Fandoms dos livros e do game The witcher – criação literária do polonês Andrzej Sapkowski – para o sucesso da série homônima lançada no final de 2019, pode ser que dê certo. São milhões de apreciadores da narrativa que conta a saga do renegado bruxo mercenário Geralt de Rívia rumo ao seu destino, a saber, proteger uma princesa (que tem poderes ocultos) de 12 anos.

Mas cada formato tem suas peculiaridades. Todo mundo sabe disso. Não há ninguém bobo numa produção de US$ 80 milhões. The witcher chegou ao serviço de streaming com grande expectativa, com muita jogada de marketing, alguns jornalistas dizendo inclusive que veio para ocupar o lugar de Game of thrones, mas a realidade é mais complicada. 

Não é a primeira vez que a Netflix inventa de concorrer com o megablockbuster da HBO, cuja última temporada foi ao ar em 2019. Em dezembro de 2014, com Game of thrones no auge de sua performance, a Netflix lançara Marco Polo, com esse mesmo intuito, fazer frente à poderosa intriga de Westeros. Marco Polo, também superprodução, tinha um roteiro mais bem trabalhado que The witcher, e só durou duas temporadas. 

Os realizadores da nova série querem fazê-la durar até a oitava temporada. Sei não. Muitos elementos contribuem para um possível fracasso. Além de problemas no roteiro (coisa que pode ser consertada a partir do segundo ano), os atores são fracos e os personagens são mal desenvolvidos, principalmente Geralt de Rívia (Henry Cavill). 

A direção não joga com a empatia do público, a fotografia é um permanente déjà vu, e as estratégias de narrativa enrolaram mais a cabeça do espectador do que ajudaram a acompanhar a introdução e o desenvolvimento dos arcos dramáticos.

Para se ter ideia, a confusão do roteiro fez a jornalista do portal UOL Beatriz Amendola, em reportagem esclarecedora em muitos aspectos (22/12/2019), dizer que “a jornada de Geralt de Rívia desenrola-se em paralelo a um grande confronto entre os reinos de Nilfgaard e Cintra”.

Não é bem isso que acontece. Para ser paralelo, deveriam ser duas narrativas. No caso da trama de The witcher, há apenas uma narrativa. O que causa o estranhamento é um imenso flashback que dá início à história, com Geralt de Rívia matando uma quiquimora (com garras de rapina, cabeça meio humana e corpo de aranha), muitos anos antes do nascimento da princesa Cirilla (Freya Allan), o seu destino.

O espectador acompanha Geralt (lê-se Guéralt) em sua sanha de caça ao monstro, matando um aqui outro acolá, inclusive uma princesa amaldiçoada (salvando outra lá na frente, mas tudo antes do nascimento de Cirilla) até o minuto 12 do primeiro episódio, quando entra em cena o tempo presente da narrativa, com Cirilla aos 12 anos, jogando bugalha com seus jovens súditos.

A ruína de Cintra

Este jogo entre presente e passado da narrativa não são eventos paralelos, são eventos de um mesmo tempo, de uma mesma história, que se intercalam para exibir uma trama que não é contada de modo linear.

A primeira sequência do tempo presente mostra o reino de Cintra e sua rainha, Calanthe, arrogante e violenta, avó de Cirilla, e o avanço do reino de Nilfgaard que toma Cintra e mata todo mundo no castelo real, sobrando apenas Cirilla, que foge. Calanthe se mata, mas antes pede para a neta procurar Geralt de Rívia, que é seu destino.

Não há spoiler aqui. O que há, isso, sim, é uma dica para se seguirem as pegadas de um longo flashback com suas reviravoltas. O flashback dura os sete primeiros episódios de uma série de oito, intercalando com o tênue fio do presente. 

Quando se entende isso, segue-se a marcha de Cirilla com clareza. A intercalação do flashback acompanha não só Geralt, mas todos os outros personagens, incluindo uma terceira muito importante na série, a bela Yennefer.

A primeira confusão do roteiro (tentativa de inovação?) se dá justamente com esta sequência da tomada de Cintra, a morte de Calanthe e a fuga de Cirilla, porque faz o espectador achar que este é o Incidente Incitante da série, ou seja, aquele momento em que o herói aceita ir à luta para salvar o mundo.

Mas, neste caso, Cirilla é quem ouve da avó “procura Geralt”, o herói de fato. E ela é a protagonista, não a heroína. O herói é Geralt, que muito antes de Cirilla nascer ouvira de Renfri, a princesa amaldiçoada que ele matou (ou pelo menos cremos assim), a seguinte profecia: “A garota da floresta sempre estará com você. Ela é seu destino.”

O Incidente Incitante, portanto, não é a destruição de Cintra. O espectador vai descobrir mais tarde qual é a importância dessa sequência. Revelar a função desta cena seria, aí, sim, um spoiler imperdoável. 

O Incidente Incitante, na verdade, está escondido no flashback, e aparece no episódio 4, um erro de estratégia narrativa, ao meu ver. Pode dar certo para um romance literário, não para uma série.

Quiromancia, tripas e ritmo

Entre os muitos recursos cênicos da série toda, esse flashback extraordinário que toma sete episódios, intercalando com o presente de Cirilla, há um flashforward dentro do flashback, que ficou esteticamente muito bem feito, uma cena de necromancia. 

Nesse flashforward (um pequeno spoiler, mas que segue a linha de esclarecer o confuso curso da trama), o corpo da rainha Calanthe é encontrado pelos Nilfgaardenses, e um homem corta um pedaço do braço da rainha morta e come. 

Em seguida, Fringilla, feiticeira oficial de Nilfgaard, enfia um punhal no ventre do homem que comeu a carne da rainha e lhe estripa. As vísceras caem para frente e o corpo para trás. Fringilla então lê nas tripas do antropófago o paradeiro da princesa Cirilla: “Está na Floresta Brokilon.” 

Esta cena é um acerto narrativo, e há muitas neste sentido. Em alguns momentos, a condução da narrativa segue um ritmo incrível, como uma dança, com cenas, cenário e atuações okay. Mas os erros de estratégia são marcantes porque tiram a paciência do espectador e complicam o sucesso da série. 

Eu nem precisaria dizer, mas devo dizer, que esta é apenas uma leitura, uma análise que pode se mostrar equivocada. Logo, The witcher pode se tornar um sucesso. Mas, se continuar nessa toada, não será, não.

Elementos

Tendo como fulcro a jornada de Geralt e o drama de Cirilla, a trama ocorre num espaço geral chamado Continente, com muitos reinos. Há um embate ideológico, uma polarização entre Norte e Sul. O Sul está sendo dominado por Nilfgaard, que representa um novo tipo de poder. Sua empreitada começa tomando justamente Cintra, que poderia ter tido o auxílio dos magos de Aretusa, mas estes lavaram as mãos.

Quem poderá deter Nilfgaard? Os poderes de Cirilla com a ajuda de Geralt e a feiticeira Yennefer (dissidente da escola de Aretusa, mas que volta para ajudá-los a conter o avanço de Nilfgaard rumo ao Norte)? 

O personagem de Cirilla se desenvolverá (e precisa) muito na segunda temporada, porque na primeira é só uma menina assustada, à deriva, em meio à violência de todo lado.

Geralt é um bruxo mercenário que sai por aí matando monstros por encomenda. Tem uma égua chamada Plotka, com quem conversa. É sério, anda calmamente, fala calmamente. Tem longos cabelos embranquecidos. 

Ele usa uma vestimenta preta, com uma fina armadura de cavaleiro também preta, um colar, com um medalhão, e duas espadas numa aljava. Em seu código de honra, não mata humanos nem dragões, e sabe-se lá mais o que vai dizer que não está disposto a matar. 

Esteticamente, o problema de Geralt é duplo: a atuação de Henry Cavill, que não consegue marcar seus gestos com expressões que gerem empatia (embora diga que bruxos não têm sentimentos), e a própria construção do personagem. 

Por exemplo, há duas informações que deveriam vir no começo, mas só aparecem no último episódio. Quem se encheu da trama antes, nem viu. A primeira é o fato de Geralt ter sido abandonado pela mãe quando criança para ser criado por um bruxo. É um órfão, portanto, que passou poucas e boas (e ali, ele demonstrou que tinha sentimentos).

A segunda é o que sua própria mãe o ensinou, um código de ética cuja máxima é “devemos viver e deixar viver”, aliada a outra, "devemos acreditar em alguma coisa, senão, o caos toma conta do mundo".  O espectador merecia acompanhar Geralt com essas informações desde o primeiro episódio.

Além disso, não rolou química na relação entre Geralt e Yennefer. A parte da fantasia funciona mansamente, com muita citação de monstros e pouca aparição deles. A parte da ação se isola em cenas divididas entre o flashback e o tempo presente, a fuga de Cirilla. 

A parte do drama é quase nula. Não ha eficiência dramática, porque é preciso bons atores diante de uma boa direção. As atrizes que fazem Calanthe (Jodhi May) e Yennefer (Anya Chalotra) são os destaques, e das duas, Jodhi May tem a melhor atuação.

A bela bruxa

Yennefer, ainda como garota da roça, rejeitada pelo pai, corcunda, torta, fazendo sexo com o aprendiz de feiticeiro Istredd, com uma plateia que no final aplaude e desaparece (fenômeno que certamente saiu da cabeça de Istredd – só um homem para ter uma ideia espetaculosa dessas)


Anya Chalotra, porém, se destaca pelo conjunto da obra. É uma belíssima e competente atriz, que até quando está corcunda, com o queixo apontando para uma direção e o pescoço entortado para a outra, é linda, com olhos expressivos, um olhar triste e pungente, uma postura cautelosa de gato escaldado. 

Quando garota, feia, pobre, corcunda, rejeitada pelo pai, Yennefer é comprada por uma ninharia por Tissaia de Vries, reitora de Aretusa. Há uma cena em que ela, ainda toda torta, faz sexo com Istredd, um dos jovens aprendizes, com um monte de gente assistindo. Seu corpo, mesmo giboso, é de tirar o fôlego. Quando eles gozam, todos aplaudem e desaparecem.

Mais tarde, ela se tornará a toda poderosa Yennefer de Vengerberg, senhora do caos, possuidora de uma força absoluta e devastadora. Mas na maior parte da trama ela esteve solitária, mesmo nos momentos compartilhados com Geralt.

Outro ponto defeituoso da trama são os diversos arcos abertos demorando a se fechar, muitas histórias fracamente se interligando, demorando demais para seus fios se cruzarem. Como se voluntariamente misturassem mundo comum e mundo especial nas diversas subtramas para soar novo, e com isso não alcançando nada além de confusão dramática.

Apesar de muito se falar no bestiário e pouco se mostrar, o espaço do realismo fantástico está bem povoado. Há quiquimora (o primeiro monstro a aparecer, e a ser morto por Geralt, na trama), graveir, súcubos, estrige (que se alimenta de fígado e coração humanos).

Há ainda lobisomem, dermoptera, vukodlak, dragões, selkiemore, manticora, djinn (gênio da lâmpada), hirikka (bicho bípede, peludo, de orelhas grandes e pontudas) e criaturas fantásticas como elfos, dríades, feiticeiros druidas e magos.

Lilith retornará?

Outra coisa que soa inépcia, embora possam ser estratégias de arcos abertos para serem explorados nas próximas temporadas, são os tropos, os espaços e personagens que aparecem uma vez e desaparecem sem explicação.

Entre os exemplos desse procedimento está a curta aparição e o desaparecimento da vila de Blaviken e a menina Marilka, o possível retorno de Lilith (deusa demoníaca da noite, enviada para exterminar a raça humana) e o destino da família real de Teméria (após Geralt desencantar a filha, fruto de incesto do rei Foltest com a irmã Adda, que havia nascido monstro – uma estrige).

Obviamente, o show runner da série (roteirista chefe), Lauren Schmidt Hissrich, e a equipe de produção e direção ajustarão os elementos e as estratégias. E aí, o espectador poderá dar uma segunda chance. 

Mesmo porque, para além das questões de narrativa, há um teor filosófico muito forte na série, baseado na sabedoria antiga, principalmente na grega, sobre destino, lugar natural, ética e poder, que merece ser considerado e apreciado pelo espectador.

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Não houve tempo para ler tudo - a morte de Harold Bloom 24 Oct 2019 11:28 AM (6 years ago)

                                                                                 Foto: Getty Images
Harold Bloom (1930-2019): “Se você não lê profundamente, e não lê de fato o que há de melhor na
literatura, então você jamais aprenderá a pensar, e se você não sabe pensar, você obtém Donald Trump”

Harold Bloom morreu aos 89 anos no dia 14 de outubro de 2019, num hospital de New Haven, Connecticut, EUA. Aquele cérebro de sinapses velozes – capaz de ler 500 páginas por hora, e que dizia que líamos para encontrar cérebros mais inteligentes do que o nosso – não existe mais.

Leitor poderoso, criador de sulcos insuperáveis na consciência crítica, Bloom deixou um legado enriquecedor. Cada livro seu é um curso completo de algum tema literário. Depois de Shakespeare: a invenção do humano, por exemplo, o leitor nunca mais lerá o bardo inglês do mesmo jeito.

A luz que se apaga com a morte de Bloom escurece uma significativa extensão do território da crítica literária. Sua morte tira-nos um pouco o chão. Ainda bem que seus livros nos servirão de lastro. Ainda bem que suas palavras iluminarão as leituras que continuaremos a fazer dos grandes gênios da narrativa. 

O que Bloom fez, no fim das contas, foi defender o humano, tão escanteado a favor das máquinas e da inteligência artificial nos dias de hoje. Por sua capacidade de ler e trabalhar tantos dados ao mesmo tempo, constantemente, vinha-nos a pergunta: “como é que ele faz? Como consegue?”

Era um tipo raro de gênio, que, se não criava personagens, se não criava tramas (chegou a escrever um romance, em 1979, The Flight to Lucifer [O voo de Lúcifer], debalde), sabia analisar como ninguém os espaços inventados pelos outros gênios da linguagem. Como ninguém, era detentor de uma energia psíquica arrebatadora. 

Seu imenso talento permitia-o manipular a massa textual de toda a literatura ocidental como quem bate massa para um bolo. E ficava gostoso, além de substancial. Seu repertório crítico foi sem dúvida o mais largo e profundo entre os críticos que li.

Digo isso na comparação com nomes como Terry Eagleton, Northrop Frye, Antonio Candido, Otto Maria Carpeaux, James Wood. Em matéria de domínio de massa textual, só Martin Seymour-Smith, dos que li, o alcança (e talvez o ultrapassasse). 

Diálogo

Seus livros me fizeram enxergar com outros olhos muita coisa dentro do campo literário, como a questão da crítica e da lança ideológica que persegue o texto, mas que não o alcança de todo. 

Foi por ele que fiquei sabendo de Zora Neale Hurston, autora de Seus olhos viam Deus, romance que Bloom colocou ao lado de Homem invisível, de Ralph Ellison. 

Também foi ele quem me disse que James Baldwin não é tão grande assim (“é apenas um documento de época”), fazendo-me perceber que não é preciso concordar com tudo que um grande espírito diz para considerá-lo, ainda assim, genialmente imenso.

Bloom não gostava de literatura engajada. Para ele, Baldwin era um escritor a serviço de uma causa política (uma causa justa, digna, necessária, mas, ainda assim, uma causa). Mas, para quem ama literatura e tem consciência negra, dá para, a um só tempo, apreciar a estética e a luta na obra de Baldwin, absorver a estética formal pura e entender Bloom. E amá-lo também, em sua larga perícia de leitura, de diluição e análise.

Origem, memória e crítica

Filho de um alfaiate e uma dona de casa (imigrantes judeus da Rússia), Bloom nasceu em 1930, no distrito do Bronx, em Nova York, em um bairro ocupado na ocasião basicamente por judeus pobres. Sua vizinhança toda só falava íidiche e hebraico.

Aos quatro anos, ele começou a frequentar a biblioteca local e a ler em inglês. Foi aprendendo a língua de Shakespeare intuitivamente, adivinhando a pronúncia e correlacionando as conexões sintáticas e semânticas. 

Numa grande reportagem produzida pelo jornalista Arthur Nestrovski, no Caderno Mais!, da Folha de S. Paulo, em 1995, cujo texto de abertura se intitula Crítico reage contra a balcanização da cultura, há um trecho da fala de Bloom em que ele comenta: “Quem lê tem de escolher, pois não há, literalmente, tempo suficiente para ler tudo, mesmo que não se faça mais nada além disso.”

Em 1995, ele foi entrevistado por Eleanor Wachtel, do programa Writers & Company, da rádio canadense CBC (disponível no YouTube). Nesta entrevista, após Bloom dizer que tinha uma memória espantosa para leituras desde seus quatro anos e que conseguia ler numa velocidade ímpar, Eleanor comenta “li em algum lugar que você consegue ler 500 páginas por hora”, e ele diz “ainda consigo fazer isso, mas não gosto de fazê-lo” (minuto 5:55).

Para se ter ideia dessa façanha, e a título de comparação, Umberto Eco disse uma vez que lia 90 páginas por hora. Embora o feito de Bloom seja algo inacreditável, eu, pessoalmente, não tenho nenhuma razão de achar que ele estivesse mentindo.

Se você consultar o Google, vai ver uma série de textos conferindo a Bloom um poder ainda maior, dizendo, por exemplo, que ele era capaz de ler mil páginas por hora. Mas, cá para nós, 500 páginas por hora já são o cúmulo da energia psíquica. Uma massa encefálica capaz de tamanha proeza já basta.

Ou seja, Bloom era uma espécie de “monstro” da palavra, ávido devorador de mundos simbólicos. Era chamado pela imprensa americana de King Kong da crítica. Nesta mesma entrevista, a respeito de seu livro O cânone ocidental, Eleanor pergunta o que é o cânone, e Bloom diz que não há nenhum mistério nisso, é só uma lista de autores que devemos ler. E dispara:

“Devemos ler Shakespeare e estudá-lo, devemos estudar Dante, ler Chaucer, Cervantes, a Bíblia, pelo menos a Bíblia do Rei James, devemos ler Proust, Tolstói, Dickens, George Eliot ou Jane Austen, James Joyce, Samuel Beckett, porque são absolutamente cruciais.

Eles fornecem uma ideia intelectual, um valor espiritual, que não tem nada a ver com a religião organizada ou a fé institucional. Devemos lê-los porque eles nos ajudam a lembrar do que somos, nos dizem coisas que já esquecemos ou coisas que jamais poderíamos saber sem lê-los, porque fazem nossa mente mais forte, porque nos fazem sentir vivos.”

Na entrevista a Nestrovski, ele havia sido mais enfático. O cânone, dissera Bloom, é uma lista de autores que “não morrem nunca”, que se renovam a cada leitura. Ou seja, conferindo o mesmo sentido de clássico de Italo Calvino, segundo o qual, clássico é um livro que você pode ler várias vezes, mas que em cada vez que o ler, aprenderá alguma coisa.

Profissionais do ressentimento e a morte do autor

Publicado originalmente em 1995, O cânone ocidental, elege 26 autores como representantes do caldeirão forjador da cultura literária do Ocidente. Os críticos à sua lista, e ao próprio Bloom, desceram a lenha, e Bloom os chamou de profissionais do ressentimento. 

Escola do ressentimento, diz Bloom, é toda a crítica acadêmica que em vez de se ater à compreensão da forma e do conteúdo do texto, mete-se a fazer sociologia e a banhar de posicionamento ideológico, sexológico e raciológico toda a literatura. 

“O que ocorreu - e parece agora impossível de ser revertido - foi uma coalizão de, entre aspas, ‘feministas’, ‘marxistas’, ‘neo-historicistas’, ‘materialistas culturais’ e teóricos de inclinação francesa - Lacan, pseudo-Lacan, pseudo-Derrida, pseudo-Foucault.

Esta coalizão representa hoje cerca de 70% dos professores em meio de carreira, e mais da metade deles são cultuadores fanáticos da Escola do Ressentimento”, diz Bloom a Nestrovski, na entrevista à Folha de S. Paulo, de 1995.

Naquele ano, Bloom escrevia mensalmente para o Mais! Em um dos textos, intitulado A inevitável presença do autor, ele continua a bater em seus algozes, com uma verve violenta e arguta. Acusa a crítica francesa de transformar todo discurso sério em um blábláblá garboso e com sotaque. 

Diz que a morte do autor é só mais uma figura de linguagem. Atribui à Nietzsche – que proclamou a morte de Deus (na verdade, Schopenhauer, muito antes, já havia dado o primeiro chute) – a influência nefasta na crítica a ponto de ela começar a negar a importância da autoria, nas pessoas dos franceses, sobretudo Michel Foucault. 

“Seus discípulos franceses (de Nietzsche), Foucault acima de todos, desenvolveram esta proclamação nietzschiana até chegar ao dogma de que todos os autores (incluindo Deus) estão mortos”, diz o crítico. 

Sua capacidade analítica era refinada e inteligente: “A única morte do autor que difere da morte mesmo, e que tem importância, é o destino dos poetas fracos. O escritor forte que se integra ao cânone, não morre nunca, que é aliás o sentido real do cânone. Ser lido para sempre: é esta a vida do autor.”

No texto Os estratagemas dos ressentidos, publicado no Caderno Mais! (29/11/ 1998), Bloom cita uma epígrafe (“Eles têm grandes números. Nós temos as alturas”), e em seguida abre o texto assim: 

“Minha epígrafe vem de Tucídides: são palavras do comandante do exército espartano, na batalha das Termópilas. No que diz respeito à cultura, somos nós agora que estamos nas Termópilas: os multiculturalistas, as pseudofeministas, os milhões de modistas, afligidos por doenças francesas, os comissários de polícia, os fanáticos do politicamente correto, as hostes de novos historicistas e velhos materialistas - todos se postam lá embaixo. Na certa vão subir e talvez sejamos batidos; nossas universidades já não passam de uma encenação e nossos jornalistas são uma paródia dos professores de ‘estudos culturais’.”

Machado de Assis, o milagre

Obviamente, Bloom não se esgota tão fácil. Para falar à vera sobre sua essência de professor, crítico literário e autor de livros incríveis, um texto de blog não basta (aliás, o blog talvez seja o único lugar onde esse texto hipotético coubesse, fora do livro, mas seria igualmente do tamanho de um livro).

Aprofundar em qualquer direção seria empilhar átomos demais. Daí esta pincelada de superficialidades, só para registrar a significativa presença de Bloom na alma de um leitor.

A angústia da influência: uma teoria da poesia, de 1973, seu livro mais importante, em termos de novo direcionamento crítico para a época, merece ser estudado até hoje, porque mostra como não se consegue escapar das influências e como se luta para se fazer original nesse mundão véi de meus verbos. 

Citemos um autor que não entra no radar de Bloom, por exemplo, João Guimarães Rosa, e que sofreu a angústia da influência, embora não se trate de poesia. Em seu único romance, Grande sertão: veredas, há uma inevitável influência de Machado de Assis, intencionalmente “raspada”. E quando sabemos biograficamente que Rosa achava Machado um estúpido literário, é como dizer bingo!

Rosa não está no radar de Bloom por uma questão de inacessibilidade, segundo o próprio Bloom, que disse (ainda) a Nestrovski que não conseguia ler Rosa e acessar seu código literário porque lia mal português. 

Em português, Bloom só conseguia ler jornais, e lia Drummond com a ajuda de amigos. Disse ainda que a tradução de Rosa em inglês era uma bosta (disse isso com outras palavras, evidentemente).

Mas, Machado de Assis, não. Bloom conseguiu acessá-lo, não sem antes passar pelo mesmo problema da barreira das línguas. “O Brasil tem excelentes escritores. Machado de Assis não foi incluído em ‘O cânone ocidental’ em razão de uma tradução opaca que me caiu nas mãos”, diz o crítico americano, em uma entrevista concedida em 2003 a Sueli Cavendish, para a Folha de S. Paulo, intitulada Bloom o insaciável.

“Mas, quando li ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’ na tradução inspirada de Gregory Rabassa, percebi sua grandeza e o examino em ‘Gênio’”, continua Bloom. “Vejo nele uma ponta do ouvido trágico shakespeariano. ‘Dom Casmurro’, na igualmente inspirada tradução de John Gledson, revela a fina ironia desse autor.”

“Em ‘Brás Cubas’, vê-se que ele é possuído até as entranhas pelo Stern de ‘Tristram Shandy’, o que em nada diminui a sua originalidade, mas o liberta do jugo das pressões puramente nacionalistas”, observa Bloom, um tagarela contumaz (num bom sentido). 

Quem tem o desprendimento de ver suas entrevistas e palestras em vídeos disponíveis no YouTube sabe o quanto Bloom gosta de falar sobre literatura, e o quanto ele é envolvido por uma presença de espírito dotada de um tímido senso de humor e pela memória (era capaz de citar Paraíso Perdido inteiro, de cor, por exemplo).

“Fui definitivamente fisgado por Machado de Assis e leio cada uma das suas frases com júbilo. Considero-o um milagre, diante das circunstâncias em que viveu, neto de escravos num país em que a abolição só veio em 1888, uma prova da autodeterminação do gênio e da arte”, diz Bloom a Sueli Cavendish.

Em Gênio, de 2002, traduzido para o português justamente em 2003, Bloom analisa os cem maiores gênios da linguagem, e entre esses gênios, coloca quatro nomes de língua portuguesa, e entre esses quatro, além de Camões, Eça de Queirós e Fernando Pessoa, está Machado de Assis.

Neste livro, Bloom diz que o Bruxo do Cosme Velho “é o maior literato negro surgido até o presente”. E olha que ele também incluiu Ralph Ellison na seleta lista de gênios. E profere a frase repetida na entrevista a Sueli Cavendish: “Machado de Assis é uma espécie de milagre.”

O título da entrevista, Bloom o insaciável, é apropriado para definir um homem que parece que não houve no mundo um livro importante que não tenha lido. Do Brasil, diz ainda que há grandes poetas também, citando Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto e Sebastião Uchoa Leite (opa! Como?). 

Combatente feroz 

Bloom publicou mais de 40 livros. Boa parte deles foram traduzidos no Brasil, como os já citados Shakespeare: a invenção do humanoO cânone ocidentalComo e por que lerGênioA angústia da influência, e seus similares, em que o autor elabora a ideia da influência (Um mapa da desleituraCabala e crítica e Poesia e repressão: o revisionismo de Blake a StevensA anatomia da influência), além de Abaixo as verdades sagradas.

Leitor exigente e apreciador de uma estética apurada, que não se encontra em qualquer texto, ele comprou uma briga (da qual não compartilho, porque não estou à altura) contra autores como a best-seller J. K. Rowling, autora da série Harry Potter.

Ele compara Rowling a Stephen King, e coloca os dois no abismo da desgraça estética: “J.K. Rowling e Stephen King são escritores igualmente ruins, titãs apropriados de nossa nova era das sombras dos teclados: computador, cinema, televisão”, diz ele num texto intitulado A criança no tempo, publicado no Caderno Mais!, da Folha de S. Paulo (03/04/2005).

Por isso mesmo, para combater esses inimigos do espírito, é que ele organizou a coletânea magistral Contos e poemas para crianças extremamente inteligentes de todas as idades, em quatro volumes, um para cada estação do ano. Nesta coletânea, há contos, novelas e poemas de autores como Lewis Carroll, Rudyard Kipling, Oscar Wilde, Esopo e os irmãos Grimm.

Para pensar, é preciso ler

No ano passado, prestes a fazer 88 anos, Bloom recebeu um professor de literatura chamado John Bredin em sua casa, em New Haven. Bredin o entrevistou por 20 minutos em um vídeo disponível no YouTube intitulado Saving Literature with Harold Bloom.

Bloom está visivelmente debilitado, sentado numa poltrona com o corpo levemente encurvado e a voz fraca. Suas mãos tremem um pouco, mas seu raciocínio é límpido, reto, de quem continuava dando aulas. 

Bredin pergunta para ele sobre a importância da literatura e por que os estudos de humanidades, em particular, a literatura, importam? A resposta de Bloom é afiada: “Se você não lê profundamente, e não lê de fato o que há de melhor na literatura, então você jamais aprenderá a pensar, e se você não sabe pensar, você obtém Donald Trump. E não é uma piada. Nada sobre ele é engraçado”, diz Bloom.

Depois, ele fala de poetas de sua predileção e até recita dois poemas de Wallace Stevens. No final da entrevista, Bloom diz que “a literatura não vale mais que a justiça elementar”, e diz que se você ler muito profundamente “não vai se tornar um monstro de iniquidade” e ela, a literatura, “não te faz necessariamente uma pessoa melhor, mas também não te faz pior. ”

“Espero dar aulas até que venham buscar meu cadáver”

Formado pela Universidade Cornell (Nova York), deu aula em várias instituições, inclusive em Harvard, mas sua consagração acadêmica está ligada à Universidade Yale (New Haven, Connecticut), onde era Sterling Professor, “comenda mais alta que se confere, na Universidade Yale, a docentes de vários campos, ostentada no passado por Erich Auerbach e Paul de Man” (Sueli Cavendish).

Na entrevista concedida a Arthur Nestrovski, em 1995, Bloom havia dito: “Espero dar aulas até que venham buscar meu cadáver.” Quando morreu, em 14 de outubro, sua esposa Jeanne Bloom disse que ele havia dado a última aula quatro dias antes, numa quinta-feira, dia 8 de outubro. Foi quase perfeito.

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The Blacklist erra ao manter Reddington fraco 27 Jun 2019 2:28 PM (6 years ago)

“Sinceramente, sou só eu, ou a raça humana está armada com a religião, envenenada pelo preconceito e absolutamente frenética com ódio e medo, galopando como malucos de volta para a Idade Média? Quem se sente ameaçado por uma garotinha indo para a escola ou por uma criança ser gay?”
Raymond Reddington

“Quando ultrapassamos um limite, a escuridão toma conta.”
Raymond Reddington


Kate Kaplan: uma senhorinha, franzina e delicada, com gestos céleres e compenetrados, que nunca altera o tom de sua voz suave

A sexta Temporada de The Blacklist (Lista Negra) é um fiasco do tamanho da derrocada de Raymond Reddington (James Spader), que começou com a vingança de Mr. Kaplan, no quarto ano da série. A história deveria parar por ali. 

Eu, que admirava a desenvoltura do personagem interpretado por James Spader, torci para que Mr. Kaplan acabasse com tudo. Achei covarde demais o que Reddington fizera com ela, embora ele tenha sido coerente. Às vezes, a coerência nos ferra absolutamente.

Mas, a série continuou, e Reddington seguiu agonizando ao longo da trama. Agora, em 2019, o sexto ano da história do concierge do crime segue no canal AXN, depois de ter rodado na sua produtora NBC, nos EUA. 

Aviso: o que se seguirá apresenta alguns spoilers, não muitos, porque o objeto de interesse aqui é o perfil do anti-herói, não o enredo, os plots, a urdidura da trama.

Enxadrista do crime

The Blacklist aborda as diversas faces do crime, todas as possibilidades de exploração e violência, o domínio do homem sobre o homem, as inúmeras astúcias e artimanhas do poder, aquele poder bem acima da miséria econômica, muito embora, a miséria humana apareça amiúde. 

Talvez seja isso que encanta, além do encantamento natural de Raymond Reddington, ou Reddington, ou simplesmente Red, que encarna bem a máxima do sociólogo francês Pierre Bourdieu de que não existe ato desinteressado. 

A série é muito bem conduzida, os personagens coadjuvantes são incríveis, mas Reddington é o maestro, e se ele vai mal, a história claudica. É fascinante ver a atuação de Red, o anarquista das trevas, sarcástico e poderoso, Red, o homem do chapéu Fedora, o espião que foi excluído, o enxadrista do crime, o fugitivo mais ardiloso da história do FBI”. 

Após desertar da CIA, Reddington, que havia sido um talentoso espião, passou para o outro lado do balcão de negócios. Começou a viver fugindo, e, durante quase trinta anos, dormiu entre hotéis de luxo e muquifos, além de pousar clandestinamente em igrejas e até em casas de pessoas que estavam viajando. 

É implacável com os inimigos. Num confronto, só os deixa vivos se tiverem algo que lhe interesse. Tem relações também com agentes do MI-6 (Secret Intelligence Service) britânico, e com o Mossad, polícia secreta israelense. Foi ele quem colocou a Samar, do Mossad, na força-tarefa do FBI, por exemplo.

Caminhos que se bifurcam

A história toda começa assim: no primeiro dia de trabalho da psicóloga Elizabeth Keen (Megan Boone), no FBI, como perfiladora forense (analista de perfis de criminosos), Raymond Reddington, o procurado número 1 do mundo, se entrega ao FBI e diz que tem uma lista negra com os criminosos mais perigosos da face da Terra, que cometem crimes e permanecem fora do radar da CIA.

No momento em que diz isso, um desses criminosos está agindo em território americano, o que ajuda Red a seguir com o plano. Ele então exige a presença de Keen, e diz que consegue ajudar a prender este e vários outros criminosos. 

Mas, para colaborar, ele também quer que o FBI não só o solte e lhe dê proteção como crie uma força-tarefa da qual Elizabeth Keen faça parte. O FBI aceita, e tudo se arma em favor de Red.

A série é escrita e dirigida pelo americano Jon Bokenkamp (e colaboradores). A primeira temporada foi ao ar na NBC em 2013. Na sequência, todas as temporadas são sempre encaminhadas para o AXN e depois para a Netflix.

A trama se desenvolve num espaço ficcional que se bifurca entre Washington e Nova York. Os personagens centrais pulam de Washington a Nova York como se estivessem separadas apenas por um rio, como se fossem Nova Jersey e Manhattan. Mas muitas cenas ocorrem mundo afora, em perseguições secretas. 

Terrível, poderoso e violento

O que The Blacklist tem de mais soberbo, de mais incrível? Reddington, é claro. Não é só sobre ele que dá para falar. A série tem vários personagens muito bem construídos, como o próprio Mr. Kaplan, além de Dembe (Hisham Tawfiq), o braço direito de Red, e os membros da força-tarefa.

Mas Red é o cara. Suas falas, sua erudição, sua genialidade, seu senso de humor criando um contraste com a frieza assassina incomparável, fazem dele um sujeito ímpar entre os anti-heróis. “É um homem muito mal, capaz de fazer coisas muito boas”, diz Liz, depois de anos de convívio com ele, entre conflitos e admiração.

O próprio Reddington se define com palavras parecidas: “Sou um homem violento, um homem terrível, poderoso e violento”.

No primeiro episódio da primeira temporada, ele já criva sua personalidade, cravando uma posição que jamais se alteraria, a de não mentir para Liz, sua obsessão afetiva, a quem ele quer proteger a qualquer custo. 

“Sou um criminoso. Criminosos são mentirosos natos. Tudo sobre mim é uma mentira”, diz Red, num paradoxo instigante porque ele é isso mesmo, e mente sem mentir para Liz. Ao mesmo tempo, há uma humanidade nele que não é vista em nenhum outro, exceto em Liz (que pode ser sua filha), num vetor trocado, porque representa a lei.

Em um dos episódios, Red conta uma história para um homem que o havia traído, história que joga luz sobre a formação de seu caráter, ilumina o modo como encara o compromisso feito com alguém:

“Quando eu tinha 15 anos, tive um emprego de verão, instalando carpetes para Albert Kodagolian, no Lake Charlevoix [Michigan – o que indica um possível local de nascimento do personagem]. Um trabalho horrível. Quente, dentro de casa, forçado a ouvir The Gambler [com Kenny Rogers] em fita cassete, enquanto o resto do mundo estava na praia”, diz Red.

“Três dias trabalhando”, segue ele em sua narração, “eu já sabia que tinha de sair. Pedi conselho para meu pai. Tudo que ele queria saber era se eu tinha dado minha palavra para o senhor Kodagolian que eu iria trabalhar no verão. Falei que sim. Meu pai sugeriu que eu devia continuar. Eu dei minha palavra. As piores oito semanas da minha vida, até o último dia.”

“O senhor Kodagolian apareceu no local do trabalho, me puxou de lado e me disse que, em 27 anos, nenhum garoto tinha ficado durante todo o verão. Ele me deu um bônus, US$ 40,00. O dinheiro mais valioso que já ganhei.”

“Foi uma lição inestimável sobre a vida. Valorize a lealdade acima de todo o resto”, diz Red a seu prisioneiro. Não precisa dizer que depois do sermão, Reddington, o bom de mira, acerta a cabeça do desgraçado e lhe encerra a vida.

Ele é fascinante por trazer essa violência e essa frieza junto à leveza dos gestos, à civilidade da fala, ao riso constante, a um rígido princípio ético (“valorize a lealdade acima de todo o resto”). Esse tipo de alma é de fato o mais cativante e o mais assustador. 

A erudição do pecador

Adora contar histórias, adora artes e música, adora uma boa bebida (vinho Margaux é o seu preferido, para acompanhar um filé, mas há várias outras cenas com outros vinhos, sempre das melhores castas, acompanhados de pratos da haute cuisine, como Romanée-Conti, safra de 78) e uma boa comida. 

Red está sempre se referindo a pratos exóticos que experimentou nos lugares mais inusitados. “Adoro linguiça e pimenta”, diz. Gosta de ovo frito e sanduíche de mortadela. Na sobremesa, aprecia baclava (leia-se baklavá), um tipo de pastel dos Balcãs, um dos pratos nacionais da Turquia, e torta de nozes pecãs. 

“Adoro frango frito”, diz ele. Não gosta de vinho branco, prefere o tinto. É a alma de Red sendo todas as coisas, para justificar o gênio que é. Adora Jazz, por exemplo, e entre os jazzistas, ama Chico Hamilton.

É sedutor, possuidor de um senso de humor incrível, e tem sempre uma boa história para contar. É culto. Sua erudição oscila aos quatro pontos cardiais das citações, dos gregos aos contemporâneos, passando – e às vezes ficando, para saborear – por Shakespeare, Freud, Carl G. Jung, Edgar Allan Poe, Ursula K. Le Guin e Picasso.

Ao citar Provérbios 21, versículo 10, sobre a tese de Salomão de que “não há honra entre os ladrões”, ele diz: “Discordo. Alguns ladrões estiveram entre os homens mais notáveis que conheci.” E completa: “Um pecador também pode ser um santo.”

Em outro episódio, Red faz a seguinte observação: “Não sou corajoso. Só pobres têm coragem. Porque eles não têm esperança. Viver na pobreza exige coragem”. Ele está citando Brecht (Mãe Coragem).

Numa cena no hospital, ao lado de Liz em recuperação de ferimentos de um atentado contra ela e Tom, Red lê o poema Invictus, do britânico William Ernest Henley (1849-1903). 

Do fundo desta noite que persiste 
A me envolver em breu - eterno e espesso,
A qualquer deus - se algum acaso existe,
Por mi’alma insubjugável agradeço.

Nas garras do destino e seus estragos,
Sob os golpes que o acaso atira e acerta,
Nunca me lamentei - e ainda trago
Minha cabeça - embora em sangue - ereta.

Além deste oceano de lamúria,
Somente o Horror das trevas se divisa; 
Porém o tempo, a consumir-se em fúria,
Não me amedronta, nem me martiriza.

Por ser estreita a senda - eu não declino,
Nem por pesada a mão que o mundo espalma;
Eu sou dono e senhor de meu destino;
Eu sou o comandante de minha alma.
(Tradução de André C S Masini)

Sagazes observações

Em algum momento de outro episódio, ele diz: “George Orwell escreveu: ‘Aqueles que repudiam a violência só podem fazer isso porque outros estão cometendo a violência em nome deles.’”

Em outro episódio, de pistola na mão, Reddington conversa com um bandido. “Freud levantou a hipótese de que tatuagens são mecanismos de defesa, maneiras de externar algum tipo de trauma interior. Então, me diga: que dor secreta você está escondendo embaixo desse exterior já bem confuso?”

A certa altura, no meio da história de alguma temporada, faz mais uma de suas sagazes observações, desta vez para um tal de Ian Garvey, quando este pede a verdade sobre os ossos numa mala: 

“A verdade é que estamos todos apegados a uma velha bola azul flutuando no mar de escuridão. Todo o resto, inclusive a verdade que você está procurando é um conto escrito por um idiota cheio de fúria que não significa nada.” Ele está citando Shakespeare.

Do voo pleno da literatura, Red faz uma rasante no vasto campo do cinema, da comédia, do cinismo, da maldade em meio ao cotidiano. No episódio 18 da Temporada 1, ele e Dembe estão com um sujeito amarrado em certo local. A Câmera primeiro capta a sala, o homem amarrado e o som das risadas, depois os dois, vendo na TV um episódio de O Gordo e o Magro.

A serpente na grama

Repito, nos momentos mais tensos, Reddington é sorridente e bem-humorado, contando histórias engraçadas. Com essa mesma cara, essa mesma demonstração de inteligência e humor, é capaz de sacar a arma e atirar em alguém para matar.

E às vezes faz isso com sarcasmo. “Você não pode atirar em mim”, diz Diane Fowler (Jane Alexander), procuradora-geral assistente do FBI, chefe da Divisão Criminal do FBI que criou a força-tarefa comandada por Harold Cooper (Harry Lennix). Ela havia conspirado contra Red. “Por que não? Você não é uma das mocinhas”, diz Red, enquanto mete balaços no peito dela.

Em outro episódio, um terrorista biológico, de discurso messiânico, chamado Becker, constrói sua célula num local secreto no mato, e de lá envia pessoas infectadas para contaminar outras em pleno voo (no céu). 

Reddington encontra Becker com uma mulher, no meio do mato. “Vocês dois aqui brincando de pique-esconde na floresta me faz pensar em algo bíblico”, diz ele. O homem então saca uma faca da cintura, “quem é você?”, pergunta. “Eu sou a serpente na grama”, responde Reddington, sacando uma pistola. 

As tiradas irônicas são inúmeras. Entre uma morte e outra, entre uma conspiração e uma trilha de escape, Reddington está sempre observando o mundo de um jeito corrosivo, cínico e bem-humorado. 

“Morri uma vez em Marrakesh, dois minutos e meio. Não vai acreditar no que eu vi do outro lado”, diz ele a alguém, no Episódio 5 da Temporada 1, e repete a mesma fala no Episódio 8 da Temporada 4, quando está sendo torturado por Kirk, demonstrando que não tem medo da morte.

Ao encontrar um médico cirurgião plástico, um criminoso, a rigor, que estava lixando as unhas dos pés, Red diz: “Não sei como consegue. Já fiz isso uma vez. Não aguentei a cosquinha”. 

Certo membro do FBI, que estava sendo chantageado por Red, diz a ele: “Você sabe que acossar funcionário federal é crime, né?” E Red responde “vou acrescentar à lista.”

Para um criminoso que está comendo um foie gras e lhe oferece, ele diz: “Acho difícil apreciar foie gras. Todos aqueles pobres gansos, os fígados dolorosamente inchados.”

Ao descobrir que o FBI não consegue identificar um criminoso pela foto, Reddington diz: “O FBI anunciou que investiu US$ 1 bilhão em reconhecimento facial, e quando diz isso é porque gastou US$ 3 bilhões. Sinceramente, se eu pagasse impostos, estaria revoltado.”

Verdade sombria

Quase tudo que ele diz, quase tudo que faz, tudo que ele é, tem um tom de ironia e perversidade, em meio a uma nesga de verdade sombria, de uma verdade da qual não se pode escapar toda vez que se mergulha no significado das relações humanas. 

Mas, de vez em quando, para além das marcações de sua ética, de não matar inocentes, nem crianças, por exemplo, algumas de suas observações fazem surgir a parte ensolarada de seu ser, às vezes em gestos, mas às vezes em frases como a que se segue:

No episódio 14, da Temporada 3, Red ajuda a força-tarefa a encontrar o paradeiro de uma mulher fanática que usa seu filho deficiente mental para matar uma série de crianças também com necessidades especiais. 

Ao resolver o caso, Reddington se depara com o autor dos assassinatos. “Eu sou feio”, diz o rapaz. “A única pessoa feia aqui está na minha frente e não é você”, diz Red, olhando para a mãe do rapaz.

Ele conhece bem não apenas a si mesmo, mas a plasticidade humana para atitudes que pendulam tanto para o extremo mal quanto para o bem. “Ninguém consegue matar alguém a sangue frio e sair disso como se não fosse nada”, diz Reddington, em um dos episódios. 

“Matei uns homens. E não perdi nenhuma noite de sono por isso”, diz Elizabeth Keen a Red. “Vai perder. Num dia qualquer, vai perder”, retruca seu protetor, o homem mau que sabe das coisas. 

O bem e o mal

O roteiro de The Blacklist equilibra bem as forças sombrias com a luz da consciência moral. Entre os episódios que ilustram essa ideia estão os que colocam Dembe em destaque. 

Num desses episódios, Red narra a história de Dembe. Seu pai era Samwel Zuma, da vila de Koidu, Serra Leoa, país africano, onde morava com a família. Um dia, foram todos mortos a mando do chefe da máfia local (Cartel Mombassa). Só Dembe sobreviveu, sendo levado pelos assassinos e vendido na cidade. 

Dembe ficou oito anos entre bandidos no Quênia. Aos 14, foi encontrado por Reddington. Já era alto, mas era também como um velho, cheio de ódio, quase imprestável. Havia sido abandonado para morrer, marcado, queimado, acorrentado ao cano do porão de um prostíbulo em Nairóbi. 

Red investiu em sua educação. Dembe foi para a faculdade e se formou em literatura inglesa. Aprendeu a falar fluentemente quatro línguas, além de se virar em mais outras seis. “Ele é esplêndido”, diz Red. 

Vinte e nove anos depois, quando Red e Dembe ficam cara a cara com Geoff, o homem que havia mandado matar a família de Dembe, este diz que não vale mais a pena, depois de tanto tempo, matá-lo. “Você viu isso, Geoff! É isso que um homem bom faz. É isso que separam homens como ele de homens como você e eu”, e atira em Geoff. 

Em um episódio bem mais adiante, o caráter de Dembe fica mais claro. Ele é mesmo o homem que prefere arranjar um jeito de neutralizar a morte, em vez de evocá-la. Esse episódio trata da contradição entre o bem e o mal. O bem vence, diz Dembe. O mal vence, diz Raymond Reddington.

Dembe está num caminhão prestes a morrer, tentando salvar um grupo de imigrantes. Se morresse, o mal teria vencido. Se sobrevivesse, o bem venceria. Sobreviveu. Mas sobreviveu por causa de Reddington, representante do mal. Os dois juntos equilibram as forças.

Um gênio que ama literatura

Na segunda temporada, há uma cena em que Red fala de como seu ser está afundado na linguagem, razão pela qual sua inteligência submerge e emerge no tecido das convenções sociais, na malha da comunicação humana, e, como uma onda produzida por uma pedra na água, alcança a mais absconsa das intenções alheias. 

À caça de um artefato conhecido como Fulcro, recipiente de uma série de códigos que denunciavam os mais poderosos homens do mundo, incluindo o procurador-geral dos EUA (ministro da Suprema Corte americana), Red desconfia que Liz o havia encontrado. “Temos de conversar sobre o Fulcro”, diz ele para Liz. “Eu já falei que não sei nada sobre ele”, responde ela. 

E é aí que começa o comentário de Red que nos interessa. “Elizabeth, um dos motivos para eu ainda estar vivo é devido ao meu amor pela leitura, sejam as palavras em uma página, que revelam os pensamentos do autor, emoções, imaginação, ou então as pessoas em uma conversa. Ignoro o que estão dizendo, para apenas ler suas expressões, sua postura, seus gestos. Liz, você está mentindo.” Liz nega. Mas estava mentindo mesmo. 

Red acha os assassinos em série sujeitos sem imaginação, lamentavelmente previsíveis. Por isso não se interessa por eles. Quando Liz investigava um serial killer chamado o Caçador de Cervos, achando estar lidando com um homem, ele cravou, só pela descrição dos crimes, “é uma mulher”. E estava certo. Era um homem, no começo, mas sua mulher havia assumido o posto. No momento da investigação, era ela quem matava.

“O senhor Reddington é um gênio. Pode ser um gênio do mal, mas é um gênio”, diz outro personagem interessante de Blacklist, Aram Mojtabai, um sujeito dócil e assustado. Morre de medo de Red, mas o admira. 

Aram é um gênio da informática, com doutorado em Harvard. Fã de Stranger Things, ele humaniza o ambiente carregado de assassinos, autoridades corrompidas e agentes durões, inflexíveis, destemidos. 

Ele é um traço cômico-dramático no meio da loucura toda. Um dia, ele aparece fumando maconha, dizendo que está estressado com a morte de Liz, e faz discurso emocionado, citando de Romeu e Julieta a coisas do cotidiano. 

No final da terceira temporada, Liz Keen morre, num plano forjado para escapar da vigilância permanente de Red, que tentava protegê-la a qualquer custo. Essa vigilância permanente era uma das razões porque exigiu que ela fosse colocada na força-tarefa. 

Quem ajudou a forjar a morte de Liz foi Mr. Kaplan. E é aí que entra o elemento fulcral nefasto de toda a trama, atravessando todos os arcos dramáticos da série, colocando-a num torvelinho de ações que a levariam à ruína, ao levar à ruina Raymond Reddington.

Mr. Kaplan, a ruína de Reddington

Red fala de Mr. Kaplan desde os primeiros Episódios, mas sua identidade só é revelada no Episódio 10 da primeira Temporada, qual é a surpresa do espectador, ao ver uma senhorinha, franzina e delicada, com gestos céleres e compenetrados, que nunca altera o tom de sua voz suave, a senhora Kate Taylor, ou Kate Kaplan (personagem da incrível Susan Blommaert).

Na primeira aparição, ela se desfaz dos corpos ao som de Maxime Nightingale, cantando Right back where we started from, num walkman. Mr. Kaplan é leal a Red. Não questiona suas ordens, não reclama da violência, das mortes, das decisões de Red. Só faz seu incansável trabalho de desaparecer corpos, com uma competência sem igual.

Um dia, Red é baleado, a mando da Conspiração (Cabala, organização secreta composta por líderes globais, membros do primeiro escalão de poder das principais potências do mundo), de Tom Connolly (Procurador-Geral). 

O esconderijo onde Red estava sendo operado foi cercado pelo pessoal da Conspiração. Mr. Kaplan permaneceu ao lado do leito de Red com arma em punho dizendo “não vou te abandonar”.

Ao descobrir que Mr. Kaplan o trai para proteger Liz Keen, Red não absorve o impacto da traição. Ele é implacável contra quem o trai, mais do que com seus inimigos, na mesma proporção que é leal com quem lhe concede lealdade. Coisa de gângster. 

A lealdade para Red é uma condição sine qua non. Mr. Kaplan havia forjado toda a trama por trás da falsa morte de Liz, a fuga para Cuba, e a nova vida que Liz teria com a filhinha e o marido. “A faxineira de repente acha que é estrategista”, diz Red.

Em Amarillo, Texas, Red dá um tiro na cabeça de Kate Kaplan, ao som de If you could read my mind, de Gordon Lightfoot (1970). O que ele não sabe é que ela sobrevive, é salva por um homem local que Red não sabia que morava ali. A área era uma reserva ambiental.

I will survive

A partir desse dia, Red começa a ter seus negócios sabotados, e ele não sabe quem é o traidor. A quarta temporada é uma espécie de câmara de ressonância da trama toda, de todas as temporadas, com mais arcos abertos do que as anteriores. 

Red e a força-tarefa veem suas ações serem antecipadas, e só depois descobrem estarem sendo espionados por um grupo de hackers chamados Thursts (a mando de Kirk, com a ajuda de Hitchin). Mas há também as ações de Mr. Kaplan, que se volta contra Red. 

Raymond Reddington, o gênio do crime, começa a perceber que está perdendo centenas de milhões de dólares em transações sabotadas, de suas operações de lavagem de dinheiro. Muita água rola por debaixo da ponte até que ele descobre que quem está por trás dos ataques é sua Nêmesis, é Kate Kaplan.

Ao longo da quarta Temporada, eu, pessoalmente, como espectador e fã da série, torci para Kate acabar com Reddington, mesmo sabendo que isso não seria possível! 

Um dos episódios faz um flashback, mostrando ainda Kate Taylor criança se despedindo da mãe morta, num contraste de sua tristeza, sob música de fundo I will survive (Glória Gaynor), que sobe enquanto corta para os dias de hoje com Kate dirigindo uma picape puxando um trailer, agindo com seu plano para aniquilar Raymond Reddington. 

Vários flashbacks marcam o episódio, que reconta o passado de Kate como babá de Masha (Liz). Isso explica por que ela traiu Reddington, para proteger Liz. Kate estudou medicina, e disse que gostava mais dos cadáveres do que dos vivos, e por isso ela era tão boa em desaparecer corpos e limpar a cena do crime, cargo que exerceu para Reddington por décadas. 

I will survive a persegue em outra voz, Cake (banda americana desde 1991). O flashback comanda novas cenas. Annie Kaplan conhece Kate num bar. As duas se apaixonam, se amam, se casam. As duas sofrem um atentado. Annie leva um tiro no peito; Kate, um tiro na cabeça. Annie morre. Kate sobrevive, e é operada, recebendo uma placa de titânio no crânio. 

Isso explica porque ela usa o sobrenome Kaplan, tendo-o usurpado em homenagem ao amor da vida dela. Isso explica também porque sobreviveu ao segundo tiro na cabeça, disparado por Red. 

“Se você me colocar numa posição em que eu tenha de escolher o que é melhor para você e o que é melhor para ela, vou escolher Elizabeth sempre”, diz Kate a Red, quando este a convidou para trabalhar para ele como protetora de Liz. “Sim, e eu insisto nisso”, disse Red, num flashback revelador de como os dois se encontraram, de como Red protegia Liz desde pequenininha.

Kate andou ocupada

Quando Kate fala com Red ao telefone, ela diz que vai acabar com o império dele. E ele então diz algo extraordinário:

“Você conhece o mestre James de Saint George, arquiteto favorito de Eduardo I? Construção concêntrica. Literalmente construía castelos dentro de castelos, impossível de invadir. Você conseguiria passar pelo muro externo só para encontrar uma torre fortemente protegida e portões, e então um muro interno mais alto formado de arcos.”

“Coitado do pobre soldado que chegou até ali. A arquitetura da minha organização foi construída pedra por pedra ao longo de décadas. Não pode entrar para me ferir, Kate”, diz Red, calmamente.

Mas Kate Kaplan também sabe o que está fazendo, e responde: “Você esqueceu que eu estava ao seu lago o tempo todo. Sei o que foi preciso para acumular o seu poder. Quem você feriu. Quem você traiu. Quem você matou. E o mais importante, como sua faxineira, sei onde os corpos estão, ou melhor, estavam, querido, e vou usá-los, e as histórias que eles contam, para acabar de vez com você.”

Sabe o que Red responde? “Andou ocupada”, com a mesma calma de sempre. E aí, Red segue perdendo seus negócios, um por um, com a investida de Kate Kaplan. Ela faz um estrago no mundo de Red, em ambas as frentes, negócios e força-tarefa.

Ele sente o golpe. “Passei 30 anos montando uma rede de informações com espiões, informantes, patriotas, traidores. Usei isso para construir um império que existe por apenas dois motivos, para me manter livre e você segura”, diz Red para Liz, a bordo da terceira classe de um navio.

Contra o Estado ninguém pode

Ferido, acuado como uma fera no meio da selva, lugar onde conhece todas as brechas, Red faz mais uma observação brilhante. “Descobri com minha experiência que as pessoas raramente mudam. E quando mudam, não podemos confiar nelas.” 

No finalzinho da quarta temporada, em que The Blacklist deveria ter acabado, você ganha uma lição, como prêmio por ter seguido essa trama incrível até aqui. Você torce para que Kate Kaplan acabe com Red, pela implacabilidade dele, pela violência e frieza dele de atirar na cabeça da mulher que dedicou sua via a ele.

Mas, para obter sucesso, ela precisa ser implacável também, igual a ele, como arrancar o olho de um homem só para acessar uma seção de arquivos secretos do FBI. E aí você percebe a inexorabilidade da violência e da vingança.

Kate é tão violenta quanto Red, tão inteligente quanto Red, tão obsessiva quanto Red, tão macabra, fria, calculista, genial quanto Red. Mas não dispõe do arsenal de Red, nem de seu acervo de astúcia e estratégias. Kate Kaplan não tem o FBI a seu dispor, cheio de falhas, oportunista, mas do lado da lei, por mais arbitrária que seja a lei. É o poder do Estado, contra o qual ninguém pode.

No final desta Temporada, Kate Kaplan é encurralada numa ponte, com Red apontando uma arma para ela. Em ambos os lados da ponte, há vários policiais armados.

Ao som de Drowning, de Kevin Morby, Kate Kaplan diz suas últimas palavras: “Eu te amei, Reddington”, e se joga da ponte. Seu corpo boia lá embaixo, enquanto a música sobe acompanhando a sequência de cenas que puxarão os créditos.

Os demais personagens

Parte do elenco: Dembe (Hisham Tawfiq), Donald Ressler (Diego Klattenhoff), Elizabeth Keen (Megan Boone), Raymond Reddington (James Spader), Tom Keen (Ryan Eggold), Harold Cooper (Harry Lennix) e Samar Marnó (Mozhan Marnò)


Além de Elizabeth Keen, os profissionais que compõem a força-tarefa são Harold Cooper (Harry Lennix), o chefe, Donald Ressler (Diego Klattenhoff), Aram Mojtabai (Amir Arison), Meera (Parminder Nagra), que morreu ainda na primeira temporada, e Samar Marnó (Mozhan Marnò), que veio da Mossad, para ocupar o lugar de Meera, que fora assassinada por Red por ter traído a força-tarefa.

Do lado de Red, os personagens fixos são Mr. Kaplan (Susan Blommaert), Dembe (Hisham Tawfiq), além de coadjuvantes menores, como Glen Carter (Clark Middleton), o rastreador digital de Red, uma figura sensacional e muito engraçada, o único que prega peças no Red, ri da cara dele, reclama o tempo inteiro e fica por isso mesmo.

Há também Tom Keen (Ryan Eggold), personagem fulcral nas primeiras temporadas, por fazer par romântico e antagônico com Liz Keen, além de uma série de figuras que aparecem como vítimas, oficiais do governo, criminosos e aliados de Red.

James Spader é um ator sensacional, que se deu muito bem nesse universo de séries de TV. Já ganhou o Emmy três vezes, mas não por The Blacklist. Foi por The Practice, 2004, e Boston Legal, 2005 e 2007. No cinema, venceu Cannes em 1989 por Sex, Lies, and Videotape.

Reddington enfraquecido

Coletivamente, a primeira e a quarta temporadas de The Blacklist são as melhores. E, sinceramente, acho que deveria ter acabado assim. Na quinta Temporada, Red aparece roubando carros para sobreviver, pegando pequenos casos de detetives para faturar uma grana e pagar o aluguel do quarto de motel onde mora. 

Um dos arcos dessa temporada mostra Red lutando para reconstruir seu império. Ele está soturno, mais calado, com menos risadas e menos histórias para contar. É uma Temporada mais sombria e sem alma, mais lenta, diferente. 

E segue assim, com Reddington enfraquecido. Tudo que acontece parece ser apenas uma tentativa de recolocá-lo na linha de tramas que o fizeram ser o sucesso que é. Ou seja, tudo que existe a partir daí é uma espécie de procura do arco perdido. 

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